sábado, novembro 5

Calango




— Mãe tem um jacaré na piscina!
— O que isso menina, onde já se viu! Estamos em Uberlândia e não em uma fazenda no Pantanal.
— Mas mãe, tem um jacaré na piscina lá no quintal, vem, mãe, vem ver!
_ Ô menina,tem não, isso é coisa de sua imaginação. Andou escutando histórias de seu pai outra vez?
— Nem conversei direito com o papai hoje, e não é história. Tem um jacaré na nossa piscina. Vem mãe, juro que tem e se a gente não salvar ele vai morrer afogado.

— Então tá, vamos lá ver o tal jacaré. Deve ser aquele do Peter Pan, que comeu a mão do capitão Gancho. Brincou a mãe com o apavoramento da pequena criança.
Numa toada ligeira a menina puxava a mãe pelo bolso da calça jeans, com tanta força que se fosse outro tecido teria estourado.

Chegando ao quintal depararam com cena inusitada. Um calango, daqueles criados, que hora se debatia e nadava em círculos, hora se deixava ficar exausto a boiar, como a buscar fôlego e forças para conseguir se livrar daquela imensidão de água, que teimava em tentar engoli-lo. O instinto de sobrevivência jamais iria abandoná-lo e aquele lagarto iria tentar se safar enquanto o menor músculo de seu esguio corpo respondesse aos seus primitivos comandos neurais. A água estava baixa, estratégia para evitar que pombas às dezenas ali não viessem saciar sede e sujar toda as pedras das quais tão bem delas cuidava.

Calango deu azar, talvez distraído com alguma borboleta e sonhando com almoço garantido, errou a pisada e despencou piscina adentro.

— Não falei que tinha! Eufórica e, com ar de vitória, comemorou a mocinha do alto de seus poucos anos de vida.

— Jacaré né? Riu a mãe
- É um calango filha. Certo que é dos grandes, mas é um calango e não vai te pegar. Disse isto, fazendo careta e fazendo cosquinhas nas costelas da menina.
— Agora me ajuda a salvar o pobre coitado, pega a redinha de catar folhas.

Com cuidado pescaram o bicho e o colocaram sobre macia grama. Afastaram alguns passos e ficaram a observar o coitado, ofegante, a se aquecer e lentamente recuperar forças. Passaram-se poucos minutos e a mando da mágica da vida, um pulo, uma carreira e lá se foi buscar refúgio na segurança fechada de exuberante canteiro de samambaias.

— Feliz agora? Seu "jacaré" está são e salvo. Me deixa correr para as panelas pois senão o almoço hoje não sai.

Beijou carinhosamente a filha e se foi a pensar que de um jeito ou de outro estavam no caminho certo. Pelo menos conseguiram passar para os filhos o amor e respeito a todas as coisas vivas. Mostrar a elas o mal que os homens estavam a fazer destruindo o lar de tantas criaturas. Derrubando o cerrado, enchendo a paisagem de falsos lagos, represas sem fim que de tão grandes, tudo destruíam à sua volta. As balelas que eram os programas de recomposição e preservação de margens que, no fim, viravam clube particular de alguns poucos.

Pelo menos, seus filhos cresciam dotados da consciência de que era preciso mudar para que o planeta, como o calango salvo, pudesse se recuperar novamente. Eles jamais jogariam lixo na rua, nunca como certos párias da raça humana ou colocariam fogo em mato, terrenos ou em montes de folhas rasteladas, espalhando fumaça para todos os lados em clara demonstração de egoismo e arrogância. Cresceriam sabemdo que os recursos são limitados e, se queremos continuar aqui devemmos aprender a ppensar como a terra.

Estava quase chegando à cozinha quando novamente ouviu grito estridente da filha: — Mãe tem uma onça na mangueira!
Sem disposição a deixar a conversa se estender, já meio de mau humor, voltou ao quintal.
_ Cadê? Deve ser algum gato perdido à caça de passarinho. Então, me mostra! Resmungou.

A menininha, meio trêmula, apontava o dedinho para mancha escura em meio à folhagem densa da mangueira.
Olhou, apurou a vista, chegou mais perto. Uma carga elétrica percorreu seu corpo de ponta-a-aponta, ficou lívida e imobilizada. Agarrou a filha no colo e saiu em desembestada carreira casa à dentro.
Era uma onça.





Versão 3.300 para Jornal Correio Publicado em 5 de novembro de 2011
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Obs: Tirei as fotos outro dia, nasceu o conto. Clique que aumentam e veja a beleza dos detalhes fo "jacaré"

Um comentário:

Clarice Villac disse...

Maravilhoso conto, que se baseia em história real.

E o final, nos deixa em estado de alerta : cadê as florestas pras onças morarem tranquilas ?

Temos muito por fazer, sensibilizar as pessoas enquanto é tempo, e este conto é um passo decisivo e importante !

Parabéns, amigo William !