segunda-feira, janeiro 26

De rodoviárias e bibliotecas





Refaço, sem muito esforço, o caminho que me trouxe a Uberlândia. Não carece repetir histórias contadas da chegada, das charretes da velha rodoviária onde hoje se encontra a biblioteca. Quando cheguei, as histórias estavam dentro das pessoas que iam e vinham de todos os cantos e por ali passavam. Hoje as histórias estão nos livros que descansam agitadamente imóveis nas prateleiras à espera de quem os desperte em vida, os folheie e viaje com eles. Bibliotecas e rodoviárias têm muito em comum. Ambas foram criadas para transportar pessoas a longínquos paradeiros. Não se medem quilômetros, léguas ou metros. Medem-se em sentimentos, expectativas, paixões, desilusões, saudades.

Mais semelhanças estão em ambas presentes. As bibliotecas trazem conhecimento, informações. O sacolejo das velhas jardineiras também. Se cada livro tem sua história, cada ser vivente que por aquela velha rodoviária perambulou também é rico em casos. Universo único, luminoso e rico. Depois de morar em pensões, quartos alugados e algumas repúblicas, finquei raiz em uma delas, a já mencionada Quilombo dos Palmares, na Felisberto Carrejo.

Esta, sim, misto de biblioteca, rodoviária, estação de trem, feira-livre, encontro de comadres, saída de missa, dada a quantidade de histórias que por lá aconteceram e, em suas paredes devem estar, como livros, aguardando quem as conte. Uma delas: Colega e hoje compadre, moço grande e forte, criado em fazenda lá pelas bandas da Cumbuca perto de Iturama. Tamanho, força, mas medroso de assombração que só. Foi a deixa. Amarramos linha de pesca em sua coberta e corremos a mesma até o quarto em frente ao nosso. Dividia o quarto com ele.

Tudo combinado. Assim que chegou da rua em noite alta de sábado, estávamos na sala, à luz de velas apenas, o breu quase total. Colega em atabaque marcava ponto de umbanda e amiga se fazia por encarnada de espírito, da fala grossa e girava a cabeça. No começo o compadre riu meio sem jeito. Aos poucos foi perdendo a graça e tremia. Dizia que era o frio. Era medo. Aquilo durou bem uns 20 minutos, quanto outro da república ligou as luzes do relógio e todos em ensaiado grito alto terminamos a “sessão”.
Deu uma pressa no “véio” – assim carinhosamente o chamávamos – de dormir que ninguém conseguia segurá-lo. E era tudo que queríamos. Noite ia fundo, todos acordados, menos o “véio”. Foi só esperar o seu alto roncar. Começou a segunda parte do plano. Do quarto em frente, começaram a puxar o fio amarrado na coberta. Eu fingia dormir para o tudo acompanhar.
No primeiro puxão a coberta foi parar no peito dele. Acordou assustado, me chamou e com voz trêmula: “Viu isso?” – “Vi nada, só é imaginação sua, vai dormir!”

Pouco passou e puxaram outra vez a linha de anzol, desta vez, com tanta força que a coberta parou nos pés. Aí foi pulo só! Ficou em pé no meio do quarto e gritou forte: — Toma que é seu alma penada, tá com mais frio do que eu, fica com ela!
Gargalhada geral, e só então o incauto tomou ciência da farra. E você pensava que estudante de república só estudava? Tempo bom.















Publicado no Jornal Correio em 25 de janeiro de 2015

2 comentários:

Miryan Lucy disse...

Foi a minha santa e boa risada do domingo...

william h stutz disse...

Que bom que te fiz rir!