Noite alta. Tenho por costume acordar
no meio da madrugada, principalmente com lua cheia. As sombras da mata bem em
frente ao mangueirão misturadas com prata da lua são convite para passeio.
Desço escadas da varanda e sigo rumo à penumbra. Vou descalço pela grama
cortada baixo. Satisfeito, sinto o molhar dos pés encharcados de orvalho
fresco. Esfrego peito do pé e abraço folhagens com os dedos, mato gelado e
frio. Sensação boa que nem de coceira de bicho de pé.
Esbarrão nas pernas. Duquesa, nossa
imensa vira-latas acordou de sono leve no tapete da cozinha e, como de costume
chega aos trancos e barrancos. Eterno querer brincar. Patas sujas de terra
vermelha, ficam marcas em dorso nu. Ralho com olho e dedo no focinho, ela em
alegre abanar de rabo e arfante língua de fora atende de pronto. Sabe o
propósito do passeio, noite de ver beleza inimaginável, sabe do silêncio a
fazer.
Na boca da mata sento em tronco
antigo de aroeira caída. Calço as botinas e sigo por trilha de pouco uso. Ramas
e galhada escondem caminho, conheço traçado. Carrego na cabeça. Perco não.
Normalmente Duquesa seguiria à frente, espantando bicho que houvesse, hoje,
sabida, segue rente calcanhar. Hora outra esbarro salto da botina levinho em
seu queixo. Toma por afago e gane baixinho. Um olhar duro a faz baixar as
orelhas, se aquieta, menos o rabo e brilho nos olhos, esses não tem como
apagar. Luz da lua desenha monstros e princesas no chão verde e nas copas das
árvores. Horda bárbara em marcha silenciosa segue ligeira entre troncos ao
sabor das nuvens e vento, num esconde/aparece da lua. Parecem marchar rumo a
falso triunfo, Águas Sextias selaria destino. Antevejo nuvens de fantasmas em debandada. Acostumei
com o recriar épicos e clássicos em caminhadas assim. A luz e suas sombras
enfeitiçam. Fornalha da imaginação carregada.
O andar é calmo, os pios, gritos e
rangeres são conhecidos parentes da noite, primos-irmãos meus.
Um tanto mais tarde logo vemos –
Duquesa e eu – um clarão amarelo de fogueira. Nosso destino. Chegamos agachados
para não chamar atenção. Apertamos o corpo bem rente ao chão de musgo e folhas
secas. Botamos atenção na prosa que de lá nos chega límpida e clara, vento a
nosso favor.
– Assim não! A bola é nossa!
– Jeito nenhum, ganhamos no par ou
ímpar, você escolheu o primeiro do seu time, então mané, a bola é nossa.
Grita outro lá do fundo:
– Começa logo sô, a noite logo vai
embora e não jogamos nada.
– Reclama não, não combinamos que não
podia jogar de cachimbo?
– Ah tá, saci sem cachimbo, então me
entrega seu gorro, quero ver!
– Gorro não, sem ele como viajar em
redemoinho, como roubar ovo indez, como fazer galinha sair do choco. Me conta?
Pensei comigo: daí porque algumas de
minhas galinhas largaram os ninhos. Eita bicho atentado.
– Outra coisa seu velho pitador, nada
de dar rasteira nem canelada. Mês passado fiquei com a perna doída.
– Você que é ruim de bola e de
traquinagens, ou acha que não estamos de olho em você?
– Inveja de vocês! Quem amarrou a
crina do alazão bravo? Quem deu nó nas espigas de milho na roça de seu José da
Novena? Euzinho – disse ensaiando um catira.
– Empurra logo esse coité e vamos
jogar, com cachimbo e touca, pois é assim que somos.
Já não conseguia mais conter o riso e
tive que morder o lábio para não dar bandeira.
Sei que aquele bando de miúdos
brigou, brigou até o sol romper em ouro transformando a mata em quadro de Miró.
Passarada a piar, corujas atentas ao jogo que não houve buscaram abrigo. No
meio da clareira, só o coité solitário.
E assim como de costume, depois de
exaustivas discussões sem que a pelada nem tivesse começado, gratificante banho
de cachoeira e cada um, feliz da vida busca seu gomo de bambu para um belo dia
de sono.
Saci é assim, em bando então. Sem
pressa. Mês que vem volto com Duquesa. Virou lenda.
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