“Podemos ser amigos simplesmente, coisas do amor nunca mais”.
Chuvas de verão, de Fernando Lobo na voz de Caetano.
Desde que resolvemos que deveríamos morar cada um no seu canto, depois de mais de três décadas de um viver juntos, tenho me deparado com situações inusitadas do dia a dia. Uma relação tão duradora e rica resultou em amizade bonita e terna. Nada de rusgas ou desavenças. Pelo contrário aflorou um sentimento forte e único, de muito carinho e solidariedade. Aprende-se a ler o sentimento um do outro. O apartar se tornou necessário, nasceu atenção especial de um para com o outro.
Mas como toda mudança traz alguns desafios assim, de lá e de cá lá, vou eu reaprendendo a seguir trecho. Dentre as vicissitudes enfrentadas, algumas merecem destaque. O tal do papel filme. Enrosco-me todo com aquilo, perco a metade até conseguir colocar no jeito de uso, o primeiro piquei todo – destino: lixo. Aprendi a comprar marca mais decente, se é que existe. O tal de passar roupa é outro suplício, antes era dividido: um lavava e o outro passava. Contas e banco. Aprendi a me programar, controlar despesas domésticas. Também com a superprofessora que tive! Me deu todas as dicas, pois, antes, só ela fazia, nunca soube nem gostava de lidar com dinheiro.
Grande desafio: compras em excesso. Sempre fui considerado inimputável em supermercados, incapaz no ato de fazer compras. Talvez privações de infância me fizeram um comprador de inutilidades. Agora, solto, comprei tanta coisa sem necessidade… Isso sem contar o não saber comprar para uma pessoa. Aprendi na bruta a lidar com o não desperdício.
Infelizmente, a indústria se esqueceu de nós solitários viventes. Não existem embalagens, pelo menos aqui, para os anacoretas. Já viu vender saquinhos com 250 g de arroz, feijão, açúcar? Pacotes porção única de macarrão? Não me falem daqueles instantâneos, pelo amor de Deus. Falo de massa fina, tipo canelone, rondeli, tagliatelle ou um imbatível farfalle. Molho de tomate, 50 g de queijo fresco ou ralado, existe? Da comida a produtos de limpeza às frutas e legumes. Verduras, então. Um pé de alface é desperdício, dá para vender meio pé? Um calcanharzinho apenas? Compro três tomates e fico com medo de deixar perder.
Um jiló para o arroz, uma batata doce, um pimentão, cabeça de alho única, cebola duas no máximo. Minha feira da semana cabe em uma sacolinha. Mas pelo menos não sobra, jogar comida fora é um desaforo. Isso sem contar que cozinhar só para você não tem a menor graça.
Não entrei nessa fase ainda. Fico na marmita por enquanto. Mas pretendo me aventurar logo pela arte da gastronomia solitária. Pequenos pratos saborosos e saudáveis. Nós solitários poderíamos criar uma confraria, trocar receitas, experiências domésticas e de vida a um. Enfatizo, sós sem solidão. Fica o clamor à indústria. Pequenas porções, sachês de sabão em pó, amaciante. Tanto a oferecer a um grupo que só faz crescer, gente que fez opção por estilo de vida. Assim poderíamos ler, escrever, compor, pintar, meditar sabendo que, em segundos, poderemos preparar delicioso repasto sem depender de disque pizza ou do Suchi in.
“Bola de meia/bola de gude/o solidário não quer solidão”.
Milton Nascimento e Fernando Brant.
Publicado Jornal Correio em 09/02/2015
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