segunda-feira, fevereiro 23

Temporal






Outro dia contei história de meu amigo, colega de república e hoje de profissão, o compadre Temporal. De nome de batismo Jeová, poucos sabem a origem do apelido, no mínimo, diferente. Peço licença ao “véio” para contar a gênese de pitoresca alcunha. Naquela época, as aulas de Histologia eram dadas no anfiteatro do bloco A do campus Umuarama e os calouros de Veterinária, Odontologia e Medicina as assistiam juntos. Bom, nem tão juntos assim. As cadeiras do anfiteatro eram dividas em três blocos separados por dois corredores. O pessoal da Medicina ficava no central, os da Odonto à direita, e nós, da Veterinária, à esquerda. Nenhuma conotação política. Qualquer semelhança com o parlamento inglês é mera coincidência.

Nosso mestre, professor Gladstone, famoso por seu rigor e fina didática, era temido entre os alunos por suas provas, principalmente, as práticas, consideradas dificílimas. Normal. Aula corria tranquila, começava às sete da manhã, o que significava que a maioria de nós tinha levantado às cinco e meia para pegar ônibus ou carona. Saudade do professor dr. Virgílio Mineiro, seu cavanhaque branco e seu Dodge Dart amarelo. Não podia ver um jalequinho em uma esquina que parava de boa vontade e lotava de alunos em carona promissora. Aula às sete, sair da cama às cinco e meia, não dava outra: metade do povo só esperava o apagar de luzes para slides e toma cochilo!

Certa aula, professor sorteia três alunos de cada turma para apresentar trabalho na semana seguinte. Um dos escolhidos? Claro, o “véio” Jeová. Assunto a ele solicitado, falar sobre as mitocôndrias.
Beleza. Dia vai, dia vem e nada de Jeová pensar em fazer a apresentação. Nossa agitada vida social republicana o impedia de tirar algumas horas para tão sofrida tarefa. E o dia chegando, e o “véio” nada.
Não deu outra, pois data marcada, seja de coisa boa ou ruim, hora chega. A dele chegou. Confiante de que o professor Gladstone iria esquecer-se dele, lá foi tranquilo.

Chama um, chama outro, Jeová começa a suar frio e me pede no estalo: me fala qualquer coisa sobre as tais mitocôndrias rápido, senão me lasco todo. Balbuciei um resumo tímido e ele, sorrindo, disse: “tá bom demais da conta, deixa comigo”.
— Sr. Jeová! Chamou o professor do alto do palco do anfiteatro.

— Pois não, professor, e seguiu confiante acima.
— Sobre o quê mesmo iremos falar?
— Mitocôndrias professor.
— Comecemos então – passou- lhe o giz e apontou para o quadro-negro.

Jeová coçou a cabeça, enxugou a palma da mão:
— É assim, as mitocôndrias são estruturas bem pequenas, que possuem umas cristas e produzem energia.
Deu uma parada olhou para nós e voltando-se para o professor retrucou.
— Olha só professor, só deu para estudar até aí, pois, ontem à noite, caiu um “temporal” lá na república e acabou a luz e, por conta das goteiras, não deu para estudar mais.

Gargalhada geral de todo auditório e até do professor. Zerou é claro. Até hoje, quase 40 anos depois, todos os contemporâneos, independentemente de curso, não sabem quem é Jeová. Mas o Temporal? Todos se lembram dele. Um detalhe: seu irmão mais novo Joel, quando foi morar com a gente, já chegou batizado de Chuvisco.






Publicado Jornal Correio em 23 de fevereiro de 2015




 Temporal

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