segunda-feira, outubro 9

Amigo da onça

Pois não é de ver. Minha função se dá de recontar o acontecido, pois a história e a idéia não são minhas, nem se sabe se dono têm, pois vêm de longe.
É do gosto das gentes, das rodas de prosa. De fim de tarde na venda. Virou caso de rir, mas contam que é um fato ocorrido.
A região é a serra do Cipó, lugar de cachoeiras imensas, campos sem fim de sempre-vivas, sempre cor, sempre lá. Do brando vento friorento das montanhas, estas sem tamanho de bonitas, de córregos infinitos, frios, uns mansos outros apressados em seu caminho serra abaixo. Gelados. Nascidos com certeza em geleiras tropicais inexistentes.

Lugar de muita lenda e susto. Grutas e bocas de cavernas de onde volta e meia brotam discos voadores prateados e barulhentos. Assustam gente e bichos, secam o leite das vacas, cavalos se perdem na emprenhês das pedras. Alguns para nunca mais.

Este é o caminho: Conceição do Mato Dentro, bem depois do Alto do Palácio, do Morro do Pilar. Para frente de Conceição escolhe caminho: para um lado Guanhães, para outro ruma-se para o Serro.

Não sei bem se a história ocorreu pras bandas de Passabém ou mais para o ermo de Itambé que, curioso, também é do Mato Dentro. Ou foi no Morro do Pilar?

Faz mal não — a história faz a valia.
Ocorrida há muito, antes de se inventar ecologia. Paz verde era nome de fazenda, seita estrangeira ou cemitério de cidade urbana, grande e barulhenta. Tempos de quando bicho sobrava e ninguém punha vigia de raça desaparecer.
Caçar onça era profissão de homem macho, resolvedor de problema — a tinhosa acostumada a comer bezerro tinha de sangrar na bala ou zagaia. Era o tempo. Assim era.

Na vila aquele que por nome recebera e respondia era Zé da Carminha, nome herdado de mãe doceira famosa. Compota de dona Carminha atravessava o mar, ia longe fazer bonito em mesa da Europa, sempre levado por algum filho de fazendeiro ou político local que por lá estudava.

Pois seu Zé da Carminha tinha por hábito, ruim, o exagero e a contação de vantagem. De onça era mestre. Medo tinha não. Com carabina, espeto ou na unha dizia que enfrentava, era só vendo.

Dia desse vindo da Capela dos Marques lá das bandas de Joanésia, beiraninho o Rio Santo, apareceu por esses lados uma turma de caçadores de onça contratados. Vinham a mando de gente graúda, incomodada com o tanto de rês devorada.

Na venda onde estavam Zé da Carminha contava o que fazia e acontecia em caçada de pintada, voz alta pela pinga.

Os caçadores, eram quatro, sisudos e enrolados cada qual em sua capa Leal como a esconder armas, só escutando.

A trova do outro foi tanta que o convidaram para a empreita contratada. A zoada do álcool era tamanha que Zé aceitou não apenas seguir com a comitiva caçadora como também guiar até ceva grande onde onça dava em pau de tantas que lá havia.
Amanhecido o dia, e a bebedeira, Zé se viu entre a cruz e espada. Se refugasse viagem era tachado de medroso, mesmo o sendo, assim de assumido para si, queria era nunca a pecha. Se fosse se borraria no miado primeiro que de lonjura que fosse escutasse.

Pois foi. Calçou a cara de falsa coragem, bregeu dois conhaques logo cedo e abriu caminho para a tropa dos de fora.

Serra acima bem longe deram num rancho abandonado, daqueles comidos pelo mato — sobrando no que era-foi antigo, só terreiro emaranhado de goiabeiras imensas, pés de limão china, poucas e velhas tábuas do que tinha sido um chiqueiro, e muita, mas muita cachopa de marimbondo-cavalo, dono de ferroada venenosa de tão doída. O poço d’água, pelas mãos de muitos pernoitantes sem rumo, estava ainda rico e bem coberto, bem zelado.

O rancho tinha duas portas, uma servia a entrada outra o quintal.

Na sombra da serra escurece cedo, sol dura menos do que no descampado. Assim, logo que o avejão da pedra abraçou o casebre, toca-se a acender fogo para quentar matula, carne seca com farinha era a janta.

Diz então um dos de lá:

— Então Zé, aqui é onde elas se reúnem.

Zé, por mais prosa que pudesse ter na língua, mentiroso não era não. Aumentava isso sim, se incluía em vantagem dos outros, mas era sério no trato. Cumprira promessa, tinha levado os homens para o ninho das onças.

— Pois então — seguiu o dito, — mostra pra nós. Busca a bicha.

Sem poder falar não, saiu Zé pela porta da horta, não deu três passos e não é que topou com a bruta! Virou nos cascos da botina e tome a correr, sentindo o sopro da onça a fungar em seu cangote.

— Abre a porta! Abre a porta! — gritava com o pouco e apertado vento que ainda tinha nos bofes.

Pois assim aconteceu, Zé e a onça entraram pela porta dos fundos, na toada que estava vazou que nem corisco pela porta da frente, bateu com força fechando a onça lá dentro com os quatro. Gritou sem parar um pedacinho de segundo:

— Vocês aí, vão tirando o couro dessa que já busco outra!

Nunca mais.

Um comentário:

Lilly Falcão disse...

Ai do céu!!! Só mesmo um grande escritor pra fazer a contação virar esse MIMO TÃO GRANDE!!! Will, carece de mais nada não: só de aplauso de admiração e respeito à elegante arrumação de letrinhas que vão ressoar por toda a vida para quem tiver o privilégio de te ler! PARABÉNS!;-)