terça-feira, abril 17

Indagações a Bento XVI

Prezado frei Betto
sei que não devia usar texto seu, aliás texto algum, sem autorização prévia. Mas fala sério, como te reencontrar para pedir permissão?
Desde os tempos da rua Gonçalves Dias com Ceará, pertinho da praça da ABC, lá em Belo Horizonte que não te vejo!

Lembra das prosas gostosas de Seu Aristides seu tio avô? As histórias que nos contava sobre as expedições pelas matas do Acre nos idos, e como idos anos de 1919-1920?

Lembra do enorme quintal, das jabuticabeiras, do bananal, da horta gigantesca? Lembra do galo que corria atrás da gente, esporas em riste, por ciúmes de seu harém galináceo?

Você era bem mais velho do que a gente, nada contra os mais velhos que fique bem entendido apenas uma constatação biográfica, chamemos assim, para situar algum leitor mais desavisado.

Admirávamos seu jeito de falar e, sempre que estava por perto nós, crianças, nos calávamos atentos.
O tempo, sempre ele, se encarrega de aproximar as idades e estreitar laços e convívio.
Explico: dá para imaginar um jovem de vinte anos proseando, discutindo Kant ou Nietzsche de igual para igual com um menino de dez? Difícil. Porém esta mesma pessoa aos quarenta nem percebe que o outro agora tem trinta.
Pois é o tempo nivela, democratiza as relações humanas. Até os amores e as paixões.

Tenho muita vontade de voltar a te encontrar, com certeza iremos discordar de muitas coisas, comungar da mesma opinião na maioria das vezes, mas o que importa é que mesmo nas diferenças, mesmo que pequenas, sempre existirá o mesmo respeito a admiração que havia quando a criança erguia alto os olhos para enxergar os seus.

Fica aqui um sincero e saudoso abraço frei Betto, quem sabe este mesmo tempo que nos aparta das gentes, um dia nos surpreende e nos aproxima novamente?
Continua a ser o que é, sempre.
Publico seu texto, se por acaso aqui o encontrar e não gostar, me avisa, tiro na hora.
Todo meu respeito e admiração

William h. Stutz



INDAGAÇÕES A BENTO XVI
por Frei Betto



Vossa Santidade ressuscitou o que o Concílio Vaticano II havia enterrado: a missa em latim. Uma exigência de monsenhor Lefebvre, arcebispo francês excomungado em 1988 por se recusar a aceitar as inovações conciliares.

Criança, assisti a muitas missas em latim, com o celebrante de costas para os fiéis, segundo o rito tridentino de meu confrade, o papa Pio V, que foi dominicano. Por que permitir a volta do latim? Quantos fiéis dominam este idioma? Jesus não falava latim. Falava aramaico. Talvez um pouco de hebraico. E por viver numa região dominada por Roma, com certeza conhecia alguns vocábulos latinos, como a saudação romana Ave, que se introduziu na oração mais popular do catolicismo, a Ave Maria.

Assim como o grego universalizou-se pelo Mediterrâneo graças às campanhas de Alexandre, o latim estendeu-se na proporção das conquistas do Império Romano. Por esta lógica, não seria mais adequado adotar, hoje, o inglês? Ora, a grande maioria dos fiéis católicos encontra-se, hoje, na América Latina. E não entende grego, latim ou inglês. Exceto poucas palavras, como paróquia, pedra e futebol. Não é bom que participem da missa em língua vernácula?

Considerado o empenho de inculturação da Igreja, não é contraditório voltar o latim à missa? Tenho um amigo, ateu até a medula, que adora freqüentar missas em latim. Para ele, a liturgia reduz-se a um espetáculo. É uma questão de estética, não a ponte comunitária entre o nosso coração sedento e o Transcendente.

Inquieta-me a sua afirmação de que é "uma praga" casar pela segunda vez e proibir os católicos que o fazem de acesso à eucaristia. Os evangelhos revelam que Jesus comungou com pessoas que, vistas de hoje, andavam distantes da moral vaticana. Ele defendeu uma mulher adúltera prestes a ser apedrejada pelos moralistas da época. Curou o fluxo de sangue de uma mulher fenícia sem, antes, exigir dela adesão à fé que ele propagava. Curou também o servo do centurião romano sem primeiro impor-lhe a condição de repudiar a seus deuses pagãos. Jesus fez o bem sem olhar a quem.

Tenho amigos e amigas que contraíram segundas núpcias. Todos por razões muito sérias, que seriam melhor entendidas por padres e bispos se eles, como na Igreja primitiva, tivessem mulher e filhos. (Convém lembrar que Jesus escolheu homens casados para apóstolos, pois curou a sogra de Pedro).

Contrair matrimônio é algo tão transcendente que a Igreja fez disso um sacramento. Ocorre que, antes de ser uma instituição, o casamento é um ato de amor. E há uniões que fracassam, pois somos todos frágeis e pecadores, e nossas opções, sujeitas a chuvas e trovoadas, deveriam merecer também a misericórdia da Igreja.

Tenho amigos e a amigas divorciados que reconstruíram suas relações afetivas e se recusam a aceitar a proibição de comungar. Minha amiga D., três meses após o casamento, sofreu com o marido um grave acidente de trânsito. Ele ficou tetraplégico. Dois anos depois, com a anuência dele, ela contraiu uma nova relação, pois ouviu do homem com quem se casou na Igreja: "Por te amar, quero-te plenamente realizada como mulher e mãe." Ela e o novo marido visitavam periodicamente o homem acidentado, que sobreviveu por sete anos e torno-se padrinho do primeiro filho do casal. Devo dizer a essa amiga que Deus, que é Amor, não está em comunhão com ela e, portanto, trate de manter distância da mesa eucarística, pois a Igreja a considera "uma praga"?

Certa noite eu me encontrava em Boca do Acre, em plena selva amazônica, numa celebração de Comunidade Eclesial de Base. Dona Raimunda, mãe de seis filhos, cujo marido havia partido para a Transamazônica em busca de trabalho - onde ficou quatro anos sem dar notícias (e ela soube que, lá, ela constituíra outra família) -, disse na missa, no momento da Oração dos Fiéis: "Quero agradecer a Deus por me ter dado um outro marido que é um pai bondoso para os meus filhos."

Dona Raimunda se uniu a outro homem que a ajudava na sobrevivência e na educação dos filhos numa situação de extrema penúria. Eu deveria dizer a ela para não se aproximar da mesa eucarística? Naquele momento, o papa João Paulo II, em visita ao Chile, dava comunhão ao general Pinochet.

Querido papa: leio na Primeira Carta de João que "Deus é Amor: aquele que permanece no amor, permanece em Deus e Deus permanece nele" (I João 4, 16). Essas pessoas que citei, e tantas outras que conheço, amam e, portanto, Deus permanece nelas. Devo adverti-las que não são amadas pela Igreja e, portanto, estão proibidas de receber o pão e o vinho transubstanciados no corpo e no sangue de Jesus, o Senhor da compaixão e da misericórdia?

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Leonardo Boff,
de "Mística e Espiritualidade" (Garamond), entre outros livros.





Nenhum comentário: