sexta-feira, outubro 31

Patrulha lingüística

Sei que muitas vezes águas passadas não movem a azenha. Mas não raro me pego bovinamente, e isso nada tem a ver com as esculturas das vaquinhas da versão cerrado da CowParede a ruminar artigos e comentários pelos quais fiz atenta leitura.

Em certeiro comentário, o leitor André Garcia Cunha cunhou — o jogo de palavras com o seu sobrenome foi involuntário, juro — o texto Patrulhamento ideológico (CORREIO de Uberlândia, Opinião do leitor, 25/10/2008), onde, com muita propriedade, rebate outro leitor que havia criticado o jornalista Ivan Santos, pelo uso da expressão “fumam qualquer cachimbo”. Apologia ao tabaco segundo aquele.

Intróito difícil esse. Acho que me situei. O mundo das diferenças, do livre pensar. Partindo dessa premissa muita coisa teria que ser mudada. Começando pelo nosso Saci Pererê. Ala de fumantes na mata para poder continuar a existir no imaginário popular. Afinal saci sem cachimbo e brincando com a brasa não é saci que se preze. Contar história dele então pode mais não, politicamente incorreto. Alguém pode evocar o Estatuto da Criança e do Adolescente, por induzir inocentes ao uso do cachimbo. Saci desempregado tomou rasteira.

Expressões como “está no pau da goiaba” jamais poderiam ser mencionadas, pois teria conotação ofensiva para alguns.
Cuidado com “nem que a vaca tussa”, pois pode gerar problemas de ordem sanitária.
“Comprar gato por lebre”, loucura, nem pensar. Dá Procon, sem contar a bronca com o Ibama por suspeita de comercialização de animais silvestres. É cana certa. Atenção patrulha: cana aqui é cadeia, viu, não é a planta, entenderam?
Quer ser tachado de criminoso ambiental? Se atreva a escrever algo tipo assim “matar dois coelhos com uma cajadada”! “Devagar com o andor que o santo é de barro”. Graves problemas religiosos à vista. Quer comprar briga maior? Então, arrisque usar a expressão “será que joguei pedra na cruz?”. Para meia dúzia, após tribunal inquisitório, no mínimo a “purificadora” fogueira.

“É tarde, Inês é morta” pode dar escuta telefônica e campana policial: suspeita de crime hediondo.
Outras frases podem, se alguém assim interpretar, gerar (in)conseqüências se levadas ao “pé da letra”. Pronto, essa também passou despercebida. “Fazer vaquinha”, “pensando na morte da bezerra”, “rasgar seda”, “enfiou o pé na jaca”, “quem não tem cão, caça com gato” e muitos outros ditados e expressões populares podem ficar na mira do patrulhamento “sem pé nem cabeça”. Essa aí escapou! O escrever torna-se tortuosa e cansativa tarefa, o ler insuportavelmente aborrecido.
A prevalecer este tipo de interpretações tão literais, nem fábrica de macarrão de letrinha vai escapar do crivo das neuras. E nós, mesmo aqui no cerrado tão longe do mar, ficaríamos “a ver navios”, cuidando para “não dourar a pílula” e sermos acusado de apologia às drogas, dando nosso “voto de Minerva” com medo de estar vendendo sabão em pó.

Enfim, o canto do cisne será mudo e ecologicamente incorreto.
Nossa língua pátria ficaria sem eira nem beira, e para fugir das rondas da censura, só apelando para o Millôr, pois a “vaca foi para o brejo’, Perdão: “the cow went to the swamp”.

Espera aí. Pensando bem, melhor mesmo é jamais “entregar a rapadura” e “rodar a baiana” contra todo tipo de patrulhamento chato. Ou não?



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