quinta-feira, maio 13

Lembranças




Desde a mais tenra idade vinha lhe a terrível sensação de pânico só de pensar. Não sabia exatamente quando tudo começou, parece que sua memória, suas lembranças fugiam propositalmente como a tentar lhe proteger.

Chegava a sonhar com aquele vulto escuro, cinzento, a se aproximar dela. Sentia de longe os estalidos de assombrosa aproximação.

Geralmente escondia-se debaixo da cama agarrada em sua boneca, olhos arregalados em agonia inimaginável. Com as mãos tampava os ouvidos. Não, não queria ver ou ouvir absolutamente nada. Chorava baixinho, mas sabia que ninguém viria em seu auxílio, pois tinha medo e vergonha de contar para outras pessoas, medo de pensarem que fosse bobagem, pura imaginação.

Certa feita seus sentidos perceberam tarde a tão temida aproximação, foi pega de surpresa longe de sua protetora cama. Estava na sala vendo televisão quando as luzes começaram a piscar em macabro ritual, viu fantasmas. Tudo que se movia era motivo de gritos e lágrimas. As janelas fechadas às pressas e em fortes baques, uma a uma a escondiam, a isolavam do resto do mundo. Não haveria a quem pedir ajuda. Entregue estava. Ouviu portas serem violentamente fechadas e o passar das chaves pelos miolos das trancas só faziam seus temores aumentar.

Tentou reagir, correr, esconder, mas, como em muitas outras vezes que aconteceriam em sua vida, sabia que não haveria saída. O melhor era se entregar sem mais lutar. Se jogar ao chão, esconder o rosto, procurar nada sentir ou ouvir. Pensar em sua boneca de bochechas rosadas, lábios de um vermelho vivo, ela sim jamais perdia seu angelical sorriso. Queria ser uma boneca.

Onde estaria ela? Provavelmente atirada sobre alguma cadeira. Precisava urgente dela. Seu porto seguro.

De súbito, as luzes se apagaram por completo. Sentiu glacial frio a lhe percorrer o corpo. Ficou paralisada. Não sabia para onde correr. O escuro piorava tudo. Com o coração aos pinotes prestes a sair pela boca, tateava a penumbra que lhe envolvia. Estendeu os braços para frente para evitar encontros indesejáveis. Falsa proteção, pois sabia que seria alcançada.

Infância e adolescência passando por este pesadelo. E quanto mais o tempo passava, mais difícil lhe parecia procurar a tão necessária ajuda. Não queria mais conviver com tamanho sofrimento e dor. Mas sempre o receio de ser chamada de fraca, e pior, ter de suportar aquele estigma pelo resto da vida e virar motivo de chacota, a faziam se fechar em copas e sofrer calada.

Com a chegada da vida adulta, namoro firme e perto de assumir compromisso maior com pessoa que verdadeiramente amava, se viu na obrigação de não manter segredos sobre seu passado.

Trêmula, temendo a reação do parceiro abriu o jogo. Aos prantos relatou tudo pelo que tinha passado. De como seus caros momentos de infância foram quase apagados por tão traumática e contínua experiência. Quanto alívio. Mesmo se fosse desprezada nada mais importava. Sentiu-se leve e livre.

Pela primeira vez na vida afi rmou com todas as letras: era ombrofóbica crônica. Viu iluminado rosto a carinhosamente lhe sussurrar ao pé do ouvido:
— Preocupa não, juntos venceremos este seu medo de tempestades.
Respirou profundamente aliviada.

Nossa língua pátria, quanta armadilha. Ombrofobia, que nome mais esquisito para medo de chuva. Ará!





Publicado em Ponto de Vista - Jornal Correio de 13 de maio 2010

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