sábado, dezembro 24

Natal na roça


A torda armou-se alva e imensa sob o brilho de manhã especialmente clara. O branco da tenda contrastava com um céu especialmente azul e limpo, daqueles que, além da cor, permitiam o encher pulmões com doce ar de pureza diamante.

No chão sob a sombra da lona iam sendo colocadas imensas tábuas de jatobá e jacarandá antigas, bem secas pelo tempo e uso. Até bem pouco tempo eram piso da casa principal da fazenda. Foi demolida sem dó. Em seu lugar ergueram moderna construção de gosto duvidoso. Modernidade invadindo a roça. Madeira que não foi guardada, como as das gigantescas janelas e portas de folhas. Todas em madeiras de lei, algumas já extintas, viraram tábua de chiqueiro ou lenha para fogão em casa de peão. Ali na morada grande, só fogão a gás e móveis de fórmica.

Muitas daquelas tábuas traziam ainda fortes manchas de cera aqui e ali que, como por milagre, ainda mantinham o brilho pleno de outrora. O negrume do jacarandá ia se formando devagar, fazendo-se destacar em mosaico ao acaso. O ranger de botas seculares eram liberados à medida que iam sendo pisadas na montagem do tablado, rangiam lembranças.

Uma marca feita a ferro quente aqui, alguns buracos de bala ali, se faziam notar inconfundíveis. Recordação incômoda de arma disparada ao acaso, acidente.

Dizem os antigos que foi o tinhoso em pessoa que calçou a bala na agulha em revólver descarregado para polimento; “o diabo atenta, o tiro entra”, reza o palavrio dos mais erados. Tragédia, disparo acidental tirara a vida de senhoria, bisavó do atual proprietário. O que aconteceu de fato ninguém explica. Coisa antiga vale à pena remexer não. Assim ficou em forma de lenda, com muitas versões com as quais o tempo contribuiu para rebuscar em cores e detalhes.

Uma sabiá laranjeira, vinda do curral, pousou na trave principal da torda, cantou longo e estridente pio. Alguns olharam para o alto em ato reflexo, outros nem se deram conta. O mais velho suspirando mirou o horizonte lindo em azul e serra:

— Vem chuva da grossa.
— Chuva de onde velho doido? Olha a firmeza do tempo! Resmungou outro.
Caduquice.

O velho deu de ombros, na verdade falara para ele mesmo, não anunciava, nem rogava praga na festa da noite. Pensou alto e pronto. Mais um suspiro e seguiu batida de pregos nas velhas tábuas que pareciam chorar em crucificação.

Mesas grandes foram colocadas a canto, muitas cadeiras chegando por sobre cabeças de peões seguindo trilheiro criado em meio ao pasto. Caminho sinuoso da estrada até o pé da serra, fila indiana lembrava carreeiro de formiga cortadeira. As cadeiras eram vermelhas, todas elas.

Entardecendo as lâmpadas elétricas foram acesas. Do alto se viam sombras imensas e espectrais refletindo no alvo pano iluminado. Passarinhada naquela noite iria dormir longe do quintal, ficariam somente aquelas com ninhos. Filhotes e ovos valiam o sofrimento da arruaça.

Os cães por sua vez, se fartavam por entre as mesas com as sobras de carne que vinham do braseiro ouro.

Muita dança, risadas e sons de talheres e copos. De quando em vez um grito mais eufórico, a cerveja e a cachaça envelhecida em tonéis de carvalho vindos de longe, despejavam alegria e embriaguez. Para as tantas, já tinha gente padiolando pelos cantos.

Céu em estrelas era surpreendido ao longe por lampejos. Clarões expunham a linha sombra da serra longe. Cada vez mais perto como que trazidos por vento frio e, cada vez mais fortes, balançando toalhas de mesa e sobrando brasas aumentando seu brilho. Chuva em cântaros desabou assim do nada. O velho peão, afastado em sua tapera, acordou com um sorriso ouvindo o Deus-nos-acuda da festa. Ajeitou a manta, bateu o pé na parede para embalar rede. Dormiu sonhando com um mar azul, com queijo coalho e carne de sol, cheiro de maresia, caranguejadas de sua infância.

Caduquice? Qual nada, Sabedoria.





Publicado no Jornal Correio em 24/12/2011.




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