"Se for falar mal de mim me chame, sei coisas horríveis a meu respeito" (Clarice Lispector)
quarta-feira, dezembro 11
Mudar ou mudar?
“ (…) A praça! A praça é do povo/Como o céu é do condor
É o antro onde a liberdade/Cria águias em seu calor.
Senhor!... pois quereis a praça?
Desgraçada a populaça/Só tem a rua de seu...
Ninguém vos rouba os castelos/
Tendes palácios tão belos...Deixai a terra ao Anteu.(…)”
O Povo ao Poder (trecho) - Castro Alves
Enquanto a minha máquina pré-histórica, mas eficiente, bate a roupa com todos seus pulos e rangeres, me passou algo doido pela cabeça, que faço questão de compartilhar com você. Tenho pela certeza de que não deverei receber muitos “Likes” por isso, mas talvez uma chuva de “Unlikes” de todos os lados, tanto da direita. Estes unlikes serão muito bem-vindos e me servem como elogio vindos da tresloucada direita. Quanto aos da esquerda nervosa que não me conhece, quais também agradeço mas sugiro uma reflexão histórica. “Livre pensar” é só pensar já dizia Millor. Você vai entender, espero.
Quando cheguei a Uberlândia, há muito tempo, os nomes das ruas e praças eram referência para um jovem forasteiro vindo da capital planejada, onde só pelo nome se identificava facilmente o bairro ou região.
Levei tempos, sou devagar para certas coisas, para saber com precisão qual era a Afonso Pena e qual era a Floriano. Isso sem contar que era só mudar prefeito e as mãos das ruas eram invertidas, provocando confusão em minha cabeça. E quer saber? Até hoje faço confusão com os novos nomes das avenidas dos Andradas e Goiânia.
Não senhor, não senhora, não sou do tempo em que um lado da Getúlio Vargas se chamava Rio de Janeiro.
Isso dito vem meu espanto quando nossa esquerda adolescente, pueril, não de idade, mas de atitudes, coisas de tempos de DCEs da vida, quer, porque quer, mudar o nome da principal praça de Uberlândia na força. Contudo, não mostra nenhuma indignação se levarmos em conta o que o caudilho Getúlio Vargas fez, entre outras coisas, com a mulher de Prestes, Olga Benário a revolucionária, que lutava para ver o fim das desigualdades e das injustiças sociais, entregando-a de bandeja, grávida, à Gestapo. Nas mãos dos nazistas foi enviada para o campo de concentração de Bernburg, Alemanha, onde foi executada na câmara de gás, (ebiografia.com/olga_benario). Um exemplo de nome de logradouro público apenas. Porém, isso é passado. Deixa pra lá, devem alguns pensar. Talvez nem no holocausto devam acreditar. E se dizem de esquerda!
Tente perguntar por nome de rua no Bairro Santa Mônica. A resposta é quase sempre a mesma: Hummm, sabe o número da rua?
Nada imposto presta.
Agora, sem consulta popular sem plebiscito esclarecedor, assim na maior, mudam, para eles apenas, o nome de uma praça.
Quer trocar o nome de praça, rua, beco, travessa, pinguela ou seja lá o que for, se eu concordar ou a maioria da população assim quiser eu topo e assino embaixo. Porém, vamos primeiro eleger vereadores prontos, comprometidos com causas assim. Se bem que mudar nome de rua é uma especialização legislativa. DEMOCRATICAMENTE! E não apenas para atender a vaidade de uns poucos. Mudança na bruta? Sem apoio popular? Nem esquerda, nem direita! Tô fora!
Certa feita queriam fechar na calada da noite a rua em que eu morava. Criar uma rua particular. Depois de muita discussão entre moradores, votou-se. Fui voto vencido, mas avisei que TODOS deveriam estar presentes no dia e na manhã seguinte quando chegassem a polícia, a fiscalização municipal e imprensa. Avisei também que o pai da ideia não poderia sair sorrateiramente, daria as entrevistas e assinaria as notificações por empachamento de via pública, respondendo juridicamente pelo fato.
Idealizadores de pronto desistiram. Esopo* outra vez na minha cabeça, nitidamente veio a fábula Assembleia dos Ratos. Colocar o sino no pescoço do gato ninguém quer. Dar ideias e pular fora é fácil.
Repito, PÚBLICA. Do povo e não de meia dúzia. Respeito até a boa intenção, mas só isso não basta. Se resolvermos viver em comunidade, há regras. Simples assim.
Mas se por nada, nem ninguém, o respeito democrático não prevalecer e a mudança for a fórceps, deixo um pedido. Aproveitem e troquem o nome de minha rua para Rua do Glorioso Clube Atlético Mineiro Galo Forte Vingador. Podem manter o CEP.
Opa, deixa eu correr que a furiosa máquina se calou. Seu ciclo está completo e tenho que aproveitar uma nesga de sol em belos tempos chuvosos.
Nem tanto ao céu nem tanto ao mar meus queridos e queridas. Menos gente, menos! E que venham as pedradas. Brincando com (não) palavras de Riobaldo Tatarana, de Guimarães Rosa: Pensar é muito perigoso ou dói demais.
Diário de Uberlândia em 08/12/2019
Descartes
Não meus amigos e amigas, não me refiro ao “fundador da filosofia moderna e da matemática moderna", René Descartes. Não me atreveria. Confesso que adorei sua obra “Discurso do Método” e a recomendo. Vamos a minha tentativa de descartes.
Já tentou descartar uma lâmpada fluorescente, uma pilha, uma bateria de celular ou seja lá que resíduo eletrônico for? Claro que já. Quem em pleno século XXI não teve algum dia que fazer isso? Bom, aí meu amigo, minha amiga, começa o seu e o meu calvário. Onde descartar corretamente? A primeira ideia que lhe vem à cabeça, caso pense com o mínimo de consciência é: vou a um ecoponto da Prefeitura. Correto? Não! Errado! Perda de tempo. Chego lá e sou comunicado de que não podem mais receber esse tipo de material, pois a lei proíbe.
Beleza, vamos à lei estadual:
Altera a Lei nº 13.766, de 30 de novembro de 2000, que dispõe sobre a política estadual de apoio e incentivo à coleta seletiva de lixo, e dá outras providências. [1]
(Publicação - Diário do Executivo - "Minas Gerais" - 16/01/2003)
Nota do autor, ou seja, eu: Atenção gente o ano da lei original é de 2000. Virada de século, ano do bug do milênio, ano em que Barrichello ganhou sua primeira corrida (juro não é gozação) e nosso tênis, com Guga, reinava no ranking mundial.
“O Povo do Estado de Minas Gerais, por seus representantes, decretou e eu, em seu nome, sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º - O artigo 4º da Lei nº 13.766, de 30 de novembro de 2000, passa a vigorar com a seguinte redação:
“Art. 4º - Compete ao Conselho Estadual de Política Ambiental - COPAM - estabelecer normas para recolhimento, reutilização, reciclagem, tratamento ou dispositivo final ambientalmente adequada de resíduo sólido que, por sua composição físico-química (…) blá, blá, blá…
§ 1º - Incluem-se entre os resíduos sólidos a que se refere o “caput” deste artigo disquete de computador, lâmpada fluorescente, pilha e bateria. (…)”
Que maravilha, problema resolvido. Você que acha. Ligo no Serviço de Informação Municipal, que mata no peito, põe no terreno e em longo lançamento faz um passe magistral para o Serviço Municipal de Limpeza Urbana. Aí um consulta o outro, a troca de passes bem perto da área, mas não finaliza. Recebo outro toque no meio de campo e me passam para a Supram.
Descolo o telefone de lá. Ouço a mensagem “Terminal interrompido temporariamente”, depois de várias tentativas. Lá vou para o Ligue Minas, cujo número é 155. Começa a ladainha de sempre. Para isso disque um, para aquilo disque dois e assim foi até chegar ao sete, referente ao meio ambiente. Para continuar o atendimento sou obrigado a digitar meu CPF. Sou bem mandado, faço. A primeira opção “ambiental” – e algo assim: Para denúncia anônima disque sei lá que número! Pô, anônima?! Os caras já têm meu CPF! O que mais querem? Meu tipo sanguíneo, saber o time que torço? O que mais? Finalizando, procurei vários estabelecimentos que comercializam estes produtos e que, teoricamente ou legalmente, deveriam receber o descarte. Explicaram-me que não era bem assim e que eles também não tinham como dar destino a tanta sobra tecnológica. Por um instante e já cansado de tentar resolver o problema do planeta terra no que se refere a resíduos tóxicos, quase joguei no lixo comum pensando que seriam separados na esteira. Foi quando descobri mais uma. Nosso aterro não tem mais esteira para separação do lixo que ali chega.
Cheguei à triste conclusão de que lei ambiental e estatuto de partido político têm muito em comum. Leia o programa de qualquer partido político no Brasil, seja de direita, esquerda, de centro, de cima ou debaixo. São lindos e maravilhosos. Se seguidos viveríamos ou iríamos ao éden. Mas o que vemos é que “na teoria a prática é outra” ou seria o contrário? Vai saber.
A tristeza vem ao imaginar que, por simples falta de opção ou por tanto dificultar a vida do cidadão, o desfazer de coisas nocivas é feito de qualquer jeito. Joga no lixo mesmo e pronto. Nem todos têm paciência e tempo para levar seu lixo tóxico para passear, buscando solução que deveria ser providenciada por quem pagamos, e muito, para tal: o serviço público.
Assim como temos que repensar soluções plausíveis que facilitem de verdade o exercer da nossa cidadania, devemos prestar mais atenção em estatutos de partidos que almejam poder. Desta forma, poderíamos cobrar com força de lei a obrigação de cada um. Não apenas votar porque o candidato é bonitinho, mente que nem sente, tem oratória fácil, te chamou um dia pelo nome (soprado por algum assessor) ou lhe deu um tapinha nas costas.
Se assim for, vamos carregar por quatro anos, ou mais, figuras tão tóxicas e tão nocivas quanto as pilhas, lâmpadas e baterias que carrego como castigo para baixo e para cima. Pensem bem. Depois não temos como nos livrar facilmente desse entulho humano. Seu voto vale ouro.
Enquanto isso, já sem raiva ou agonia, sigo levando minhas pilhas, lâmpadas e baterias para passear por mais tempo, sem saber o que fazer com elas. Vou acabar me afeiçoando e se algum dia me desfizer delas posso até sentir saudades ou escrever uma crônica, sem discurso, sem método.
Diário de Uberlândia em 01/12/2019
Jardins
Domingo quente. Novidade. Todos os dias da semana assim estão. A chuva vem em golfadas, chove aqui e ali adiante nem goteja.
Vindo das montanhas onde, quando despenca, a água toma a cidade, aqui no cerrado sempre me surpreendo toda vez que passo de uma área de chuva para outra seca. Na mesma rua às vezes. Pelo Whatzapp pipocam mensagens, com a senhorinha dançando a dizer “Aqui tá chovendo! Ai tá chovendo?
Não, aqui não choveu, penso. Nem uma gotinha trazida pelo vento ou asas de passarinho. Vejo água, feito rio, descer pelas ruas vindas sabe-se lá de onde. Aqui o sol castigando.
Lá nas serras e montanhas nuvens são aprisionadas nas pedras e se o céu fica embruscado geral, com água descendo para todo mundo. Obviamente me refiro a cidades menores, para um Belo Horizonte que, como serpente de concreto, avançou morro acima, engolindo aquelas situadas em seu entorno. Fica como aqui, chove norte, sol ao sul.
Aqui não. É vasto, amplo, o horizonte é reto – talvez um desmiolado terraplanista tenha desenvolvido a teoria da terra-pizza em algum ponto do cerrado. E olha só a manchete: “Segundo pesquisa do Datafolha, 11 milhões de brasileiros acreditam que a Terra é plana”. Fernão de Magalhães treme em seu descanso eterno com tanta babaquice. Olavo de Carvalho me poupe vá!
Se o Instituto de pesquisa avançar mais descobrirá que milhões acreditam em Papai Noel, outros tantos juram que coelho bota ovo de chocolate e outro grupo grande e sofrido acredita que os problemas do Brasil se resolvem com uma ditadura de direita ou de esquerda. Estes não são apenas desmiolados, são o retrato de uma cultura imbecilizada por propagandas massivas e Tweets infindáveis. Pense bem.
A beleza das terras altas como sempre encantam. Os espaços sem obstáculos deixam as nuvens livres, num vagar solto. Sisudas, as nuvens carregadas escolhem onde despejar carga. Tórrido domingo, resolvo visitar alguns jardins que pela vida fiz. Na primeira visita chego distraído próximo à primavera em desalinho, por falta de trato. Distraído e esquecido da época de choca dos pássaros pretos, fui recebido por um esquadrão negro a me dar rasantes e bicadas leves na cabeça.
Haviam se esquecido de mim tão ligeiro? Outro dia comiam em minha mão quirera farta. Hoje, ataques? Defesa das crias, isso sim. A memória dos agrados é apagada pela fúria protetora de mães e pais zelosos. Coloquei-me a conversar manso com eles e logo se acalmaram, pousando bem ao meu lado. A primavera, agora largada, se debruçava até o chão. Deu dó, pois já previa seu destino em poda. O Flamboyant Mirim estava em plena florada. Sorri. A pitagueira a pitangar, a amoreira amorando, deixando frutos pelo chão para alegria das cocares e das abelhas. Confesso que a pitangueira não plantei. Provavelmente algum morcego ou sabiá ali deitou semente, que vingou forte. A goiabeira salva, goiabando vigorosa, repleta de frutos cantos, encantos.
Outro grande jardim. Modificado, mas ali. Soprou lembrança de minhas mãos. O jambolão imponente com sua sombra maravilhosa, o grande ipê rosa, o esquálido ipê branco acuado em sombra. Vi florir uma vez. A mama-cadela, bela. Frutos com gosto de molecagem crescendo, crescendo. Abrigo de joões-de-barro. Lembranças. Sigo. O Jardim na sacada, que não plantei, mas vi de perto, sempre belo e bem cuidado.
Memória voou por outros jardins já desbotados, de perfumes indecifráveis e perdidos, com crisântemos, beijos multicoloridos e samambaias, muitas da adolescência. Orquídeas e espigado pé de Araçá, há muito sem sabor, quando muito amargo fel, já enterrada esquecida aleivosia.
“É sonho-segredo/Não é segredo/Araçá Azul fica sendo/O nome mais belo do medo/Com fé em Deus,/ Eu não vou morrer tão cedo/ Araçá Azul é brinquedo.” Assim cantou Caetano. Visitei outros tantos jardins. A maioria não existia mais. Abacateiros, bananeiras, árvores tantas. Hoje dão lugar a casas e prédios. O concreto enterrando aprazível verde.
Não me entrego. Ninguém deve desistir. Devemos sempre cultivar um jardim. Se não for possível em terra, que seja em nosso imaginário. Ali intocável prova de vandalismo do progresso ou de emoções se eternizará e poderemos colher sempre a fruta mais doce, a flor mais bela, sentindo o deleite da sombra mais fresca que a vida pode nos oferecer. Basta querer, basta cuidar. Somos todos jardineiros de nossos sonhos.
Jornal Diário de Uberlândia em 24 de outubro 2019
quarta-feira, novembro 20
Embarcação
Teve uma vida maravilhosa, uma família linda e equilibrada. Claro, problemas normais de uma existência sempre apareciam; aconteceram brigas, discussões, caras feias, maus humores. Mas sempre acabava bem, entre lágrimas e sorrisos sempre se amaram. Passou aperto de dinheiro, salário muitas vezes mal chegava ao fim do mês. Dava-se um jeito. Algumas doenças entre entes queridos, chorou a perda de amigos e parentes, passou por tudo que todos passam, pelo muito que a vida nos reserva de bom e de ruim. No seu balancete, muito mais coisas boas do que ruins. Num campeonato de desgraças, caso existisse nunca estaria no G4, sempre, para sua felicidade, pendurado na zona de rebaixamento.
Filhos criados, netos ao redor, realizado profissionalmente. Poucos, mas bons amigos, era feliz. Não praticava nenhuma religião específica, acolhia o que de bom cada uma oferecia. Da umbanda ao judaísmo, passando pelo budismo, lia muito Kardec. Sabia os salmos de cor. Era ouvinte atento da Mishná. Respeitava e reverenciava todas as coisas vivas, a vida em seu entorno era uma eterna contemplação.
Conhecia o canto de cada pássaro, os nomes das árvores, o gosto dos frutos. Pelo vento sabia se ia chover ou fazer frio, lia com fluência os sinais da natureza. Emburrava com a mesma facilidade que retomava o bom humor, era difícil e ao mesmo tempo fácil conviver com ele, apesar da ciclotimidade, era uma pessoa totalmente do bem. Não havia por que temer a morte, para ele uma simples passagem, uma ida à esquina, um natural ir.
Fizera alguns pedidos para quando sua hora chegasse: que seus órgãos fossem doados, que os verdadeiros amigos o “bebessem” em festa e queria ser cremado. Era só tocar no assunto que mudavam o rumo da prosa. Evitavam o certo?
Passou dessa para melhor dormindo, sem um dia sequer de doença ou hospitalização, literalmente morreu como um passarinho, e não foi de estilingada. Seus órgãos doados sem maiores transtornos. Decidiram em relação ao traslado do corpo que seria encaminhado para cidade onde houvesse crematório e de lá suas cinzas seriam recambiadas para sua família, para a cerimônia fúnebre.
Cremado foi, recolhidas as cinzas e aí, caros leitores, começa o verdadeiro martírio. Para trazer as cinzas foi contratada via internet, facilidades cibernéticas oferecidas em lindos sites, uma funerária com o sugestivo nome de “Embarcação” cujo lema era:
— Partiu dessa? Nós embarcamos!
O pote de cerâmica marajoara com as cinzas foi devidamente recolhido no local combinado e, segundo a empresa, seria entregue à família no dia seguinte. Amanheceu, passou o tempo e nada. Preocupados ligaram para a tal Embarcação, onde uma secretária pouco hábil apenas justificou que ocorrera erro de endereço e as cinzas foram parar em outra cidade, longe do destino final, mas que naquele dia mesmo já estariam no caminho certo e que aqui aportariam em segurança. O morto virara encomenda, estava em pé de igualdade com simples lajotas ou caixas de ramonas. Sexta passa e nada. Agora não adiantava ligar, a Embarcação não funciona nos fins de semana.
A segunda aflita custa a chegar e com ela, depois de longo périplo e atraso, enfim, o bom pó ao lar retorna. Viajou mais em cinzas do que em vida. E assim, fez-se o último de seus pedidos. Em festa, um mar de gente, era mais querido do que imaginara, bebeu o morto por sete dias e sete noites.
Da próxima vez, se houver, usarão sedex ou carta registrada, é mais seguro garanto. E ele, descansou em paz.
Publicado em Diário de Uberlândia em 17/11/2019
Esperança
Amanheceu dia normal. Céu misturado em azul e brancas nuvens. Às vezes, e erroneamente, esquecemos de prestar atenção no dia que se abre em torno da gente. Seja por noite mal dormida, uma discussão sem pé nem cabeça, uma dorzinha mais forte nas costas ou pernas. Como dizem por aí, se você acordar sem uma dorzinha sequer olhe em volta, pois talvez você nem neste plano está mais. A rotina. Coar café no minimancebo, aguar a horta e as tantas plantas, dar comida para os gatos que, mal se abre a porta, lá estão com miar negativo de fome. O “miau-miau” soa mais como um “não-não”. Devagar vou despertando para o em volta. Sinto o frio da água nos pés descalços a alegrar as vidas enraizadas, observo o beija-flor a pousar em grande folha e se banhar nas pocinhas acumuladas. “Não-não”, murmura princesa. Não imagino o que possa querer agora. Passa roçando na minha perna e some entre os jardins.
Como contei um dia aqui, mudamos para nova casa. Estamos a vesti-la de plantas ao nosso gosto, pois estava meio desnuda para nosso jeito de viver. Duas lindas mudas de trepadeiras recém-plantadas já pediam apoio para subir. Na desorganização de minhas tralhas não achei arame, nem nada que pudesse guiar as novas moradoras de nosso pequeno jardim.
Ideia repentina. Correntes, sim correntes finas seriam perfeitas, pois ofereceriam os vãos para um enroscar seguro. Único jeito era sair à cata. Aproveitando viagem, muita coisinha para fazer. Emoldurar uma bela serigrafia de Antônio Poteiro com suas cores vibrantes, que parecem saltar aos olhos. Época de vermifugar os gatos. Em recuo secular não houve vacinação contra raiva em quase cidade nenhuma do Brasil, falha na produção. Risco de terrível doença voltar como pesadelo. Quanta coisa faltando.
O comércio se aproveita. Vacina antes oferecida por meio de nossos impostos, agora ficou caríssima. Mas temos que vacinar, fazer nossa parte. Recomendo a todos que vacinem seus bichos. A RAIVA MATA. Não esperem cair do céu, os governos não estão empenhados, nem preocupados.
Assim foi passando a manhã. Fome de almoço apertando. Depois de longa procura encontrei as correntes em uma ferragista, exatamente como queria. No pagar, o dono não trabalhava com cartão de débito ou crédito. Sinuca de bico, pois por costume não ando com dinheiro, gasto fácil. Preocupa não, quando passar por esses lados outra vez você me paga. Disse-me aquele senhor calvo e calmo, de olhos azuis opacos pela idade e sorriso nos lábios.
Olhei bem dentro de sua alma, mas ele nunca me viu. Como poderia ter certeza de que eu voltaria para acertar as contas? Tocamos a procurar em bolsos e bolsa. Consegui cavar uma parte. Ficou faltando centavos. Ele riu. – Eu sei que você me pagaria.
Senti-me feliz como criança. Ganhei o dia. A mornice do acordar brilhou. Por pouco tempo. De volta ao carro estacionado notei que o mesmo tinha tomado pancada feia, estava arranhado e torcido. Uma sensação estranha correu corpo afora, da ponta dos pés à nuca. Não era raiva, nem indignação. Afinal era só um carro. Era sentimento de impotência frente ao fato em si. Como alguém faz isso e nem te espera? Tiramos os outros por nós mesmos, pois era o que eu faria e o que meu filho já fez. Pensando solução, de soslaio vi pequeno papel no para-brisa. “Bom dia, esbarrei em seu carro, não vi ninguém por perto. Por favor, me ligue”. Havia o número do telefone e assinatura.
Tremi na base. Pela segunda vez em menos de meia hora duas demonstrações de idoneidade, caráter e credibilidade na raça humana. Logo eu que pouca fé tenho nessa nossa espécie. Parecia aviso, ou melhor, alerta. Há esperança. Liguei para o número do papel e a pessoa se prontificou a custear o estrago. Assim fez. Levei para funilaria. Orçamento feito voltei a fazer contato. Autorizou a arrumação e, antes que eu chegasse em casa, o recibo do pagamento pelo serviço já estava em meu celular.
Lições de vida em dia sem expectativa. Fui chamado atenção para voltar mais para os humanos em crédito e fé. O mal não pode existir sem o bem. A moeda da vida e suas duas faces. Um dia importante a mudar comportamento e postura. Eu, em surto de ignorância e desperdício, dando nada por ele.
Brindei ao dia. Há esperança. Lembrei de um lema woodstokquiano que devemos carregar vida afora. Todo dia é único e precioso.
“Today is the first day of the rest of your life”. Ou como sempre minha mãe poeta Alda insistia em nos dizer: “No fundo, bem no fundo, encontrarás a pérola”.
Há esperança!
Publicado em Diário de Uberlândia em 10/11/2019
Como contei um dia aqui, mudamos para nova casa. Estamos a vesti-la de plantas ao nosso gosto, pois estava meio desnuda para nosso jeito de viver. Duas lindas mudas de trepadeiras recém-plantadas já pediam apoio para subir. Na desorganização de minhas tralhas não achei arame, nem nada que pudesse guiar as novas moradoras de nosso pequeno jardim.
Ideia repentina. Correntes, sim correntes finas seriam perfeitas, pois ofereceriam os vãos para um enroscar seguro. Único jeito era sair à cata. Aproveitando viagem, muita coisinha para fazer. Emoldurar uma bela serigrafia de Antônio Poteiro com suas cores vibrantes, que parecem saltar aos olhos. Época de vermifugar os gatos. Em recuo secular não houve vacinação contra raiva em quase cidade nenhuma do Brasil, falha na produção. Risco de terrível doença voltar como pesadelo. Quanta coisa faltando.
O comércio se aproveita. Vacina antes oferecida por meio de nossos impostos, agora ficou caríssima. Mas temos que vacinar, fazer nossa parte. Recomendo a todos que vacinem seus bichos. A RAIVA MATA. Não esperem cair do céu, os governos não estão empenhados, nem preocupados.
Assim foi passando a manhã. Fome de almoço apertando. Depois de longa procura encontrei as correntes em uma ferragista, exatamente como queria. No pagar, o dono não trabalhava com cartão de débito ou crédito. Sinuca de bico, pois por costume não ando com dinheiro, gasto fácil. Preocupa não, quando passar por esses lados outra vez você me paga. Disse-me aquele senhor calvo e calmo, de olhos azuis opacos pela idade e sorriso nos lábios.
Olhei bem dentro de sua alma, mas ele nunca me viu. Como poderia ter certeza de que eu voltaria para acertar as contas? Tocamos a procurar em bolsos e bolsa. Consegui cavar uma parte. Ficou faltando centavos. Ele riu. – Eu sei que você me pagaria.
Senti-me feliz como criança. Ganhei o dia. A mornice do acordar brilhou. Por pouco tempo. De volta ao carro estacionado notei que o mesmo tinha tomado pancada feia, estava arranhado e torcido. Uma sensação estranha correu corpo afora, da ponta dos pés à nuca. Não era raiva, nem indignação. Afinal era só um carro. Era sentimento de impotência frente ao fato em si. Como alguém faz isso e nem te espera? Tiramos os outros por nós mesmos, pois era o que eu faria e o que meu filho já fez. Pensando solução, de soslaio vi pequeno papel no para-brisa. “Bom dia, esbarrei em seu carro, não vi ninguém por perto. Por favor, me ligue”. Havia o número do telefone e assinatura.
Tremi na base. Pela segunda vez em menos de meia hora duas demonstrações de idoneidade, caráter e credibilidade na raça humana. Logo eu que pouca fé tenho nessa nossa espécie. Parecia aviso, ou melhor, alerta. Há esperança. Liguei para o número do papel e a pessoa se prontificou a custear o estrago. Assim fez. Levei para funilaria. Orçamento feito voltei a fazer contato. Autorizou a arrumação e, antes que eu chegasse em casa, o recibo do pagamento pelo serviço já estava em meu celular.
Lições de vida em dia sem expectativa. Fui chamado atenção para voltar mais para os humanos em crédito e fé. O mal não pode existir sem o bem. A moeda da vida e suas duas faces. Um dia importante a mudar comportamento e postura. Eu, em surto de ignorância e desperdício, dando nada por ele.
Brindei ao dia. Há esperança. Lembrei de um lema woodstokquiano que devemos carregar vida afora. Todo dia é único e precioso.
“Today is the first day of the rest of your life”. Ou como sempre minha mãe poeta Alda insistia em nos dizer: “No fundo, bem no fundo, encontrarás a pérola”.
Há esperança!
Publicado em Diário de Uberlândia em 10/11/2019
6ª Turma
Carrapato, Temporal, Goiaba, Fubá, Bafo, Gatão, Placenta, Gavião, Chico Puto. Escovão, Carteiro, Pirapora, Zé da Bola, Barrica, Turquinho, Tamborete, Braço, Calango. Pode parecer escalação de time de futebol. Longe disto, estes são alguns dos apelidos de nossos colegas da Quinta Turma de Formandos do Curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal de Uberlândia, em 1980.
Explicar o nascimento de cada um desses apelidos exigiria um tempo enorme. Assim, acho melhor guardá-los apenas para nós, pois nem nossas esposas, acredito, sabem as verdadeiras razões dessas alcunhas.
Ser estudante naquele tempo significava, por si só, ser um vencedor. Não é fácil aprender a conviver em comunidade. Nossas repúblicas também foram fantásticas escolas de vida. Nem sei como funcionam hoje em dia, mas pelo silêncio parecem ser um marasmo. A conferir.
Bato o remo na correnteza da vida, sigo rio abaixo. Contra a correnteza ou maré não tem jeito.
Um belo e acolhedoro recanto próxima a Claraval, Minas Gerais, a bela Estância de Sant'ana, foi palco de nosso encontro de trinta e nove anos de formados na arte de cuidar dos bichos e, consequentemente, da saúde coletiva humana. Naquele doze de dezembro de 1980 fizemos nosso juramento. Existem dois. Um oficial, outro não. Ambos possuem a mesma essência:
"Juro no exercício da profissão de Médico Veterinário, doar meus conhecimentos em prol da salvação e do bem-estar da vida, respeitando-a tal qual a vida humana e promovendo convívio leal e fraterno entre o homem e as demais espécies, num gesto sublime de respeito a Deus e a natureza."
Este é o não oficial, mais curto, porém mais direto à nossa prática de vida.
Um mar de branca neve caiu em cortejo neste outubro de 2019 pelas estradas que nos levariam ao mágico fim de semana. Eram nossos cabelos, antes fartos e negros, hoje brancos. Alguns nem neve ostentam, pois os perderam. Outros abusam dos Tabletes de Santo Antônio, vaidosos a segurar o tempo.
Estância aquela que carrega em fé o nome da filha de Emerentia e Stollanus Sant'ana, avós de Cristo para aqueles que creem. Linda homenagem.
A neve espalhada na cabeça da moçada e até em sobrancelhas, parecia nos contar da rapidez do tempo, do quanto realizamos e o que ainda temos a realizar. Somos agora médicos veterinários idosos, velhos jamais teimo em repetir, jobens a muito tempo.
Isso ficou claro neste nosso encontro. Carece contar que, de alguns anos para cá, nossos encontros se tornaram anuais. Sinônimo de união e amizade. Cada vez em uma cidade, em que um de nós assume a organização. Cabe aqui lembrar que nos anos redondos (10,20, 30) festejamos na fonte, onde tudo começou.
Se todos os 51 formandos de 1980 compareceram à comemoração? Não foi possível. Dois já mudaram de plano e hoje passeiam entre estrelas, pura energia cósmica. Outros, por motivos pessoais não puderam ou não quiseram ir. Às vezes o passado pode trazer lembranças não muito boas, um tanto amargas.
Para quem esteve presente ficou clara a alegria do reencontro. Crianças grandes nas risadas, nas brincadeiras, no contar histórias de nossa bela época republicana e de nosso dia-a-dia atual. Quantas experiências de vida juntas em um só lugar. A importante participação de nossas companheiras de vida, motivando e integradas ao festivo contexto. Não deve ser fácil aguentar essesantigos adolescentes e nossos reavivamentos. Este um dos motivo de tamanho companheirismo. Alguns com seus filhos hoje adultos como a cuidar dos pais.
Ah, repúblicas! Mesmo aqueles que eram daqui saborearam a vida responsavelmente louca/sadia de nossas casas sem portas/tramelas, sempre prontas a receber.
No encontro na pequena presépio Claraval, festa.
Antes, na capela da propriedade realizou-se missa, pessoas de grande devoção, foi emocionante. Depois muito churrasco, chopp, música e, claro, molecagem.
Bom demais ver a moçada feliz com a vida e profissão.
Sem falsa modéstia, pois já ouvimos isso de muitos, a Medicina Veterinária da UFU tem um grande divisor de águas: antes e depois da 5ª Turma. Modéstia? Às favas!
Em 2020 a festa dos 40 será em aqui em Uberlândia, berço de nossos primeiros passos no cuidar de gente e bicho. Que venham todos. A festança vai ser cigana. Se puder dura semana ou mais.
Digo a vocês com toda segurança do mundo que, se tivesse que começar tudo outra vez faria Medicina Veterinária. Na UFU, é claro!
Publicado em Diário de berlâdia em 03/11/2019
Explicar o nascimento de cada um desses apelidos exigiria um tempo enorme. Assim, acho melhor guardá-los apenas para nós, pois nem nossas esposas, acredito, sabem as verdadeiras razões dessas alcunhas.
Ser estudante naquele tempo significava, por si só, ser um vencedor. Não é fácil aprender a conviver em comunidade. Nossas repúblicas também foram fantásticas escolas de vida. Nem sei como funcionam hoje em dia, mas pelo silêncio parecem ser um marasmo. A conferir.
Bato o remo na correnteza da vida, sigo rio abaixo. Contra a correnteza ou maré não tem jeito.
Um belo e acolhedoro recanto próxima a Claraval, Minas Gerais, a bela Estância de Sant'ana, foi palco de nosso encontro de trinta e nove anos de formados na arte de cuidar dos bichos e, consequentemente, da saúde coletiva humana. Naquele doze de dezembro de 1980 fizemos nosso juramento. Existem dois. Um oficial, outro não. Ambos possuem a mesma essência:
"Juro no exercício da profissão de Médico Veterinário, doar meus conhecimentos em prol da salvação e do bem-estar da vida, respeitando-a tal qual a vida humana e promovendo convívio leal e fraterno entre o homem e as demais espécies, num gesto sublime de respeito a Deus e a natureza."
Este é o não oficial, mais curto, porém mais direto à nossa prática de vida.
Um mar de branca neve caiu em cortejo neste outubro de 2019 pelas estradas que nos levariam ao mágico fim de semana. Eram nossos cabelos, antes fartos e negros, hoje brancos. Alguns nem neve ostentam, pois os perderam. Outros abusam dos Tabletes de Santo Antônio, vaidosos a segurar o tempo.
Estância aquela que carrega em fé o nome da filha de Emerentia e Stollanus Sant'ana, avós de Cristo para aqueles que creem. Linda homenagem.
A neve espalhada na cabeça da moçada e até em sobrancelhas, parecia nos contar da rapidez do tempo, do quanto realizamos e o que ainda temos a realizar. Somos agora médicos veterinários idosos, velhos jamais teimo em repetir, jobens a muito tempo.
Isso ficou claro neste nosso encontro. Carece contar que, de alguns anos para cá, nossos encontros se tornaram anuais. Sinônimo de união e amizade. Cada vez em uma cidade, em que um de nós assume a organização. Cabe aqui lembrar que nos anos redondos (10,20, 30) festejamos na fonte, onde tudo começou.
Se todos os 51 formandos de 1980 compareceram à comemoração? Não foi possível. Dois já mudaram de plano e hoje passeiam entre estrelas, pura energia cósmica. Outros, por motivos pessoais não puderam ou não quiseram ir. Às vezes o passado pode trazer lembranças não muito boas, um tanto amargas.
Para quem esteve presente ficou clara a alegria do reencontro. Crianças grandes nas risadas, nas brincadeiras, no contar histórias de nossa bela época republicana e de nosso dia-a-dia atual. Quantas experiências de vida juntas em um só lugar. A importante participação de nossas companheiras de vida, motivando e integradas ao festivo contexto. Não deve ser fácil aguentar essesantigos adolescentes e nossos reavivamentos. Este um dos motivo de tamanho companheirismo. Alguns com seus filhos hoje adultos como a cuidar dos pais.
Ah, repúblicas! Mesmo aqueles que eram daqui saborearam a vida responsavelmente louca/sadia de nossas casas sem portas/tramelas, sempre prontas a receber.
No encontro na pequena presépio Claraval, festa.
Antes, na capela da propriedade realizou-se missa, pessoas de grande devoção, foi emocionante. Depois muito churrasco, chopp, música e, claro, molecagem.
Bom demais ver a moçada feliz com a vida e profissão.
Sem falsa modéstia, pois já ouvimos isso de muitos, a Medicina Veterinária da UFU tem um grande divisor de águas: antes e depois da 5ª Turma. Modéstia? Às favas!
Em 2020 a festa dos 40 será em aqui em Uberlândia, berço de nossos primeiros passos no cuidar de gente e bicho. Que venham todos. A festança vai ser cigana. Se puder dura semana ou mais.
Digo a vocês com toda segurança do mundo que, se tivesse que começar tudo outra vez faria Medicina Veterinária. Na UFU, é claro!
Publicado em Diário de berlâdia em 03/11/2019
Procissão
Longa e silenciosa procissão. Em silêncio oratório seguem com seus coloridos estandartes escarlates, outros tantos de vivo amarelo marcavam cordão a um canto da imensa fila. Alguns empunhavam o que parecia ser bastões. A formação militar espantava. Organizados e objetivos abriam caminho pelo asfalto quente como se este não os incomodasse em nada, tamanha a concentração e objetividade.
À distância segura acompanhei penitente aquele desfile. Não porque me sentisse ameaçado ou coisa parecida, pelo menos de imediato mal fazer não parecia estar nos planos deles. Não queria interferir e menos ainda ser responsável por algum desacerto naquele penitente caminhar. Olhar me bastava. A rigidez de comportamento assustava. Não havia perdão, misericórdia para com aquele, qualquer lá fosse o motivo; exaustão, distraimento, tropeçasse ou deixassem cair por terra seu estandarte. Passavam por cima, pisoteavam. Parecia que o indivíduo isolado nada representava, o todo sim era importante, o serpenteado movimento daquelas imensas filas, ao botar mais atenção notava-se nitidamente que eram duas, uma ladeando a outra, mas em movimentos militarmente sincronizados, como se ligação visceral entre ambas existisse. Aquele deslocamento sincrônico era mágico e vivo por inteiro.
Longa e dupla fila virava esquinas, imensos quarteirões, gigantesca multidão. Nem o menor barulho se fazia ouvir. O pisar, apesar de ligeiro, era leve e calculado, objetivo não era chamar atenção. Acostumada a vista à observação, notava-se ao largo, em vários pontos outros empunhando imensas bandeiras como velas de jangadas ao sabor de um mar pouco amigável. O vento as fustigava sem piedade e não raro as fazia tombar. Rápidas, como que receosas de repreenda, aprumavam e deslizantes seguiam caminho.
Lembrou cortejo preparando colorido tapete como os de Ouro Preto e santa sexta-feira. Cantarolei baixinho Milton: “Velejar, velejei/No mar do Senhor/Lá eu vi a fé e a paixão/Lá eu vi a agonia da barca dos homens”… Quietude e prece. A falta de tolerância com os tropeços alheios tirou a fé de questão. Troupe guerreira em busca de novas conquistas – assim as vi por minutos.
O avanço era descomunal, o amarelo e vermelho pintavam o asfalto. Aquarela em permanente movimento. Acácias e flamboyant aos poucos esquartejados seguiam para preparo de banquete. Haveria festa e dança para os vencedores?
A frase “ou o Brasil acaba com a Saúva ou a Saúva acaba com o Brasil” demonstrou mais uma vez ser descabida. Muito antes das cidades de ouro dos nossos índios, dos estes sim invasores portugueses; muito antes das capitanias hereditárias e de gritos de uma independência que nunca chega que elas aqui estão. Cumprem sim dever cívico de manter o que resta de nossas terras férteis e adubadas. Prejuízo? Não, chamo de desforra.
Se pragas são, então aqui estão duas a conviver em harmônica inimizade. Homem e saúva. A saúva não acabou com o Brasil, nós humanos, todos os dias, aos poucos, mas metodicamente, nos esforçamos ao máximo para cumprir o papel creditado às pequenas formigas. E, se o objetivo é esse, fiquem (in)tranquilos. Estamos conseguindo. Vorazes gente-saúva, insensíveis a pisotear sem piedade qualquer que cruzar nosso caminho. Egoísmo.
Sem acácias, flamboyant ou cores. Não haverá festa de fartura coletiva. Solidão.
Publicado em Diário de Uberlândia em 27/10/2019
Sabiás
Seis horas da tarde. O calor parece grudar no corpo. O sol se foi, mas deixou rastro em paredes, chão, caixas d'água e piscinas. No meio do dia passou mansa nuvem escura como imenso Zeppelin. O vento norte foi levando a navegar em céu/mar tranquilo. Estava a revisar telhado na espera de chuva e acompanhei seu calmo flutuar deitado no barro quente das telhas. Terra à vista! Pensei ouvir. Ventos fracos a favor, firme no leme, “navegar é preciso”! Sem pressa se arrastou longe. Nem uma gota de presente, nem um dobrão de prata ou ouro nos deixou. Simplesmente se foi em fantasia.
Segui o resto do dia a fazer vasos de plantas, mudas e começar a dar nova cara ao cantinho novo. Novo para nós, construção das antigas, sólida. Do tempo em que massa de cimento era até verde forte. Colocar nosso sino de ferro, com uma bela coruja forjada no topo, deu trabalho. A broca de videa, mesmo em martelete, chorou fumaça e pó. A noite chegou, mas o calor abraçou a escuridão. Nem um ventinho. As folhas pareciam imobilizadas. Quietas que só.
A quebrar silêncio, sinfonia de cigarras. Dois tons. Machos em prosa de namoro. Só eles cantam em um tentar encantar parceira.
Cigarra canta, sinal de chuva longe, diziam. Hoje não dá para confiar mais. Nos estertores de vida luz sabiás cantaram seu melodioso chamado, hora de recolher. E eram tantos…
Pois não há de ver que passeando na web, procurando saber sobre passarinhos, me deparei com o site “Conexão Planeta” e curiosa história de um de nossos queridos bichos de pena! Um Pavaroti, uma Nina Simone, uma Amy Winehouse das aves. Os sabiás da super urbana São Paulo deram pra cantar à noite? Mudaram hábitos. Acho que cansaram de competir com o inferno daquela megalópole. Como namorar no meio de tanto barulho? Achei que o barulho lá só durava à luz do dia, mas contaram que não, visto que os sabiás acharam alguns momentos noturnos para encontrar par.
Conta-nos Sandro Von Matter, no Outras Mídias (outraspalavras.net/outrasmidias) que a canora ave inspirou com seu belo canto poetas consagrados como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Tom Jobim, Luiz Gonzaga e Chico Buarque. Mas entre todas as homenagens, uma se destaca na memória popular. O poema Canção do Exílio, onde o poeta Gonçalves Dias imortalizou a ave em seus famosos versos: “Minha terra tem palmeiras, onde canta o Sabiá”.
Von Matter, em seu belo texto intitulado A incrível insônia do sabiá-laranjeira, conta que estes delumbrantes cantores “foi (ram) alvo de uma das maiores polêmicas do mundo das aves. Inesperadamente, populações da espécie residentes em algumas áreas da cidade de São Paulo trocaram o dia pela noite e passaram a cantar por toda a madrugada. De um momento para outro, seu magnífico cântico, antes idolatrado em poemas, se tornou o centro de milhares de reclamações por parte dos paulistanos incomodados pela cantoria fora de hora.” (outraspalavras.net/outrasmidias/em-sp-a-incrivel-insonia-do-sabia-laranjeira).
Como se vê, paulistano deve ser de outro planeta, com muitas e, claro, superlativas exceções. Tamanha mudança de hábitos que deveria pelo menos ser festejada pela população, tão carente de suaves melodias. O povo anda irritado com tanto barulho de passarinho. Onde já se viu? Vai cantar na roça, no mato. Nosso barulho de estimação ronca alto e cheira a diesel. Que cara de pau desses bichos! Resmungavam indignados. Por conta disso falo que não dá mais para se fiar nem na natureza, pois esta pegou jeito humano no comportar. Cigarra cantando chama chuva ou a espanta?
Tanajuras não enxameiam mais para a alegria de nós crianças antigas que, por prazer e molecagem, as caçavam para fazer rinha, ver briga. Mera e inocente morbidez de quem teve infância pé no chão. Havia ainda o prazer de uma bela fritada das bundas dessas formigas com farinha, feita em fogãozinho de tijolo, no fundo de imenso quintal verde de tanta fruta. E os caras reclamando de "algazarra” de melodia de sabiás. Durma-se com um barulho desses.
Alguma coisa acontece no meu coração "Que só quando cruza a Ipiranga e Av. São João É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi Da dura poesia concreta de tuas esquinas Da deselegância discreta de tuas meninas"
Ah! Caetano, tomara eu ver!
“Navegar é preciso”. Viver? Ainda busco entender.
Publicado em Diário de Uberlândia em 20/10/2019
Fábula com PH
Esopo contava como se fosse sapo, mas se assim tranquilo fosse, o sapo iria comer o escorpião, pois é um de seus grandes predadores. Aliás, esse era o motivo do bicho querer atravessar o rio. Ficou sabendo que do lado de lá tinha muita cobra e onde tem cobra sapo não canta, pois vira janta. Já de cá era uma saparia danada e ele vivia andando pelos cantos a se esconder. Assim, lá foi ele buscar recurso para atravessar aquela imensidão de água. Se fosse nos dias de hoje seria fácil, bastaria se misturar a alguma mudança que iria tranquilamente parar do outro lado, sem maiores problemas.
Aí veio La Fontaine e misturou tudo. Sabem como é, quem conta um conto acrescenta um ponto e assim vai. Fica do jeito que cada um quer. A travessia aconteceu de fato, mas foi feita por uma tartaruga que, velhaca que só, também veio com aquele papo de não levar o escorpião, pois temia ser picado no meio do rio e assim morreriam os dois.
O escorpião retrucou. Como vou te picar cara! Primeiro, seu casco é duro como pedra e, mesmo que eu quisesse, apenas o arranharia. Não estou a fim de virar comida de peixe, caso você se sentisse ameaçado. Segundo, se estou fugindo de sapo não vou querer parar dentro d’água.
Além do mais, como vou saber se você não vai me sacanear, mergulhando atrás de um casco de saia ou de algum peixe apetitoso?
Tem lógica, pensou o quelônio. Se lento no andar, era veloz em pensar. Durante a travessia a conversa foi nascendo. Lembraram da história da cigarra e da formiga, que se matou de trabalhar, mas que, com as reformas na previdência, não conseguiu se aposentar. Por conta disto ficou a ver navios e viver de trocados como agente da cigarra. Esta, mesmo com os cortes na área da cultura e com um ministro sem noção, conseguia pontas em novelas e talk shows. Assim, logrou comprar casinha nos estertores do projeto Minha Casa Minha Vida. Com isto ainda cedeu um quartinho nos fundos para a formiga descansar os ossos e o corpo, todo doído de tanto carregar peso vida afora e nunca conseguir uma consulta no SUS para se tratar.
Falaram do sapo que queria ficar do tamanho de um boi e que se lascou de tanta bomba, pensa, anabolizantes de todo tipo. Até de cavalo tomou. Resultado? Também está na fila do SUS no aguardo de um transplante de fígado. Depois de muito falar da vida alheia, lá pelo meio do rio…. Não, não houve a sacanagem da ferroada. Rolou foi a ideia de montarem um negócio de travessia com o nome TartaEscorpion Transportes Náuticos and Rescue. Nome em inglês dava mais moral e já que o presidente humano era obcecado por tio Sam, poderiam até pedir um adiantamento no BNDES. Ficariam ricos, já que o bicho homem estava de sacanice com a natureza, com total vista grossa ao fogo e represas. O empreendimento poderia ser tipo um SAMU de bichos, nas horas de sufoco. E, quando tivesse tranquilo, fariam passeios turísticos ou de guerrilha, levando bichos para atormentar as gentes.
A tartaruga balançou a cabeça várias vezes, molhou a boca e retrucou: Meu, você é bom de negócios! Numa simples travessia criamos uma parceria. Qual o segredo de tanta imaginação? Ah, cara! Quatrocentos milhões de anos aqui no planeta, você tem que ver a negociação que meus ancestrais fizeram com um meteoro. Convenceram a figura a bater na terra bem no meio da península de Yucatán, no México, originando a cratera de Chicxulub e acabar com tudo, menos com os de minha espécie e as baratas que eram e são até hoje nossa mais saborosa comida. Foi um período bem legal, sem concorrência, gente ou políticos. Pena que durou pouco, apenas alguns milhões de anos. Tínhamos acabado de sair da água, mas a bicharada em terra era imensa e feia que doía. Então, nasceu a ideia de termos o planeta só pra nós. Bons tempos, bons tempos.
Cara, vocês eram fera para negócio desde Cretáceo! Na verdade, era o início do Paleógeno, corrigiu o escorpião. Imagina que bom pra nós, pois no começo foram dois anos de total escuridão. Bom demais! Ai, além de tudo, um monstro de conhecimentos essenciais! Sua ideia é simplesmente genial! Tô dentro! Começamos quando? Animou-se a tartaruga.
Que nada, minha amiga cascuda! Nosso negócio será apenas uma startup, “essa é a minha natureza e nada poderia ser feito para mudar o destino.” Vamos rachar de ganhar grana mano!
Publicado em Diário de Uberlândia em 13/10/2019
segunda-feira, outubro 7
Prelúdio
Amanheço primavera. O calor da madrugada avisava mudança, que poucos percebem. O céu empoeirado escondia o azul único, só visto no cerrado, vasto de olhar. O ver longe, sem as molduras de pedra lá do coração de Minas, encanta quem chega.
Amanheço primavera, tempo embruscado, vento morno. Tudo ia mudar, quem conhece sente. Meio da noite, do nada brisa leve dançou nas cortinas recém colocadas. Anos dormindo sem elas, ainda não acostumei fechar. Ontem à noite imensa coruja de torre, em seu voo silencioso, passou perto de mim. Senti o vento de suas asas. Ela já sabia das mudanças e saiu à caça mais cedo. Filhote para cuidar.
Mesmo em vigília sorri feliz. Estiagem estava com dias contados. Dia demorou um pouco mais para passarinhos e angolas, que observavam em silêncio a virada do tempo. Nem um pio, nem um cantar. Previam. Guardar quietude em poleiro, precaução. O céu desceu cérceo, ficou ali a imaginar.
No clarear, os urbanos pardais como executivos engravatados e aflitos rumo aos seus escritórios vazios de vida, começaram a piação mocha e lamentosa, tal qual trabalhadores sonolentos, calejados de descaso empilhados em lotação. Logo um ligeiro trovão se fez. Chuva mansa a tamborilar em cobertura do quintal.
Ainda aprendendo os novos sons da morada recém ocupada. Nossos cheiros não dominam plenamente tamanho espaço que, apesar de pequeno, para nós é tudo. Coisa de mineiro, casa é porto seguro. Pássaros pretos, agora em feliz algazarra, mostrando peito e bico para o céu. As maritacas, mais discretas nesse tempo, ficaram no crá-crá sem piscar e a roer coquinhos de palmeiras. Tô-fraco, tô-fraco, tô-fraco… cocar começa a ladainha. Época de criar para todos, os ninhos passariam pela primeira provação. O vento e a chuva.
A carreira de formigas cortadeiras apressou o passo, pois cada pingo era como um bombardear ruidoso. Atingidas, rodopiavam, perdiam a carga e em rápido recuperar corriam a seguir caminho de volta na busca de tarefa. Os gatos buscam abrigos, qualquer cobertura serve. Um lamento humano me chega aos ouvidos: Ô merda de chuva! Quase não acreditei. Deve ter estragado penteado. O espelho deve ser seu oratório, Narciso.
Rezei baixinho, para que todos os santos e orixás se apiedassem da criatura. A alegria das plantas, dos bichos e da maioria dos humanos me faz esquecer o injuriar da triste figura – perdoe a audácia Cervantes. Muitos moinhos de vento a combater para uns tantos, para outros, apenas na cabeça, vento.
Logo chuva aquietou. Recolheu-se rápida. Talvez apenas um ensaio geral, uma marcação de palco, acerto em sons e luz. Senti-me um solitário na plateia vazia, sentado na melhor poltrona do teatro. As luzes do dia se acenderam de vez. Só me restou levantar e ver o mundo lá fora. Não gritei Bravo!
As poucas poças secaram em movimento de sombra, rápidas. O céu e suas nuvens permaneceram de prontidão. Quem sabe a estreia, a avant-première se fará perfeita? Trovões em sonoplastia afinada, relâmpagos à perfeição de todos os holofotes, ventos bailarinos a rodopiar por sobre nossas cabeças como acrobatas de circo em palco largo, boca de cena rica em personagens e história. Nossos riachos, rios e represas, em agradecimento correrão ricos em vida. O palco cerrado se tornará verde deslumbrante, o fogo destruidor se apagará ficando apenas cinzas e cheiro azedo, que logo dará lugar a floradas inimagináveis, ao nascer de milhões de novos pios e cantos. Tocas repletas de carinho. Mães a lamber crias.
Mais um ciclo de morte dando lugar a plena vida. E o nosso pequeno espaço de mundo, nosso cerrado, acordará Prima Donna. O espetáculo não pode parar. Nasci primavera. Espero como admirador em fila longa e demorada. Sem pressa. Enfim chegou! Tomem seus lugares e aplaudam o renascer de um novo tempo. No mais, Gerais!
segunda-feira, agosto 26
Dois pesos duas medidas
Simplesmente andar pela cidade, adoro e sempre faço a pé. Porém, tive que usar o carro, pois havia cantos distantes e opostos a percorrer. Confesso, o dia foi um sufoco enfrentando o trânsito maluco. A falta de educação, agressividade e desobediência à simples regras, como setas, por exemplo, me lembraram um blindado pelas ruas de uma Bagdá arruinada por guerra. O parar em fila dupla é martírio. Tente sair de trás do folgado enraizado à sua frente para ver onde vai parar!
Ninguém, ou quase ninguém, para e com gesto educado lhe permite sair da armadilha. Fiscalização zero. E os tais que colam na traseira de seu carro? Podemos vê-los pelo retrovisor, identificando apenas um capô a bater queixo em fúria como se fosse morder a lataria. As caminhonetes são mestres nisso. Gente urbana com carro de trabalho rural. Ostentação pura. Carros que foram feitos para as estradas de terra passam vida sem nunca ver poeira de verdade.
Sejamos justos, os pedestres não ajudam muito. Desconhecem a tal faixa a eles reservada para passarem de uma calçada a outra em segurança, a despeito de motoristas que quase não param para quem ousa atravessar em sua frente e a pé! Quanta ousadia! E as motos? Para estas, um observar especial. Costuram entre os carros, ultrapassam pela direita, aceleram o que podem e se aglomeram como enxame à frente de todos em sinais fechados. No amarelo, alheios, partem em nervosa revoada por ruas que já não comportam tamanho transitar de máquinas e gente. Saí de casa com pressão 11/7, no meio da manhã 13/9 e na volta do dia 14/9. Claro que são estimativas criadas por minha cabeça confusa diante de tanto desatino. Ou você acha que ando com um esfigmomanômetro no carro? Se bem que hoje em dia temos relógios de pulso que podem fazer o papel do MAPA. Não, não é o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, hoje comandado por ninguém menos do que a líder da Bancada Ruralista. Pode isso Diretor? Pode tudo hoje em dia. Isso não é assunto para agora, pois não quero ficar mais estressado outra vez. O MAPA ao qual me refiro é Monitorização Ambulatorial da Pressão Arterial e que, em meu humilde entender, de ambulatorial não tem nada. Você sai dia adentro com aquele trem pendurado no braço e caixinha na cinta que, de tantos em tantos minutos, te faz lembrar que tem coração.
E por falar em estresse, tecnicamente o tal, de acordo com o IPCS, Instituto de Psicologia e Controle do Stress Marilda E. Novaes Lipp, “é uma reação do organismo que ocorre quando ele precisa lidar com situações que exijam um grande esforço emocional para serem superadas. Quanto mais a situação durar ou, quanto mais grave ela for, mais estressada a pessoa pode ficar.” Ou mais claramente, “o estresse é fundamental para nossa existência. Situações tensas desencadeiam uma reação imediata do corpo, que libera mais adrenalina, hormônio que acelera o coração, e cortisol, substância que eleva a pressão e aumenta o aporte de energia aos músculos.”
Mesmo não estando na selva a fugir de predadores. Ou estamos? Meu amigo, o que tem de aperto por aqui mesmo, haja adrenalina, vem de balde. No dia seguinte, escaldado, deixei o carro em casa. Fui de ônibus até ao terminal central e de lá bati perna para acabar de resolver os por fazer. Pendengas poucas, mas que tomam tempo.
Como nossa cidade pode ser linda vista da rua e não da janela de um carro! As pessoas devolvem sorrisos e bons-dias. Uma ou outra baixa os olhos, mas é exceção. Sentei na calçada de esquina movimentada a observar casal de malabares exercendo seu belo e secular ofício. Depois de um tempo sentaram-se ao meu lado e conversamos muito. Contaram-me histórias de suas aventuras Brasil afora, dos apertos e alegrias de serem mambembes sem destino certo. Fiquei feliz perto de tanta liberdade. Felicidade do outro é um bálsamo para a alma. Sem essa de “inveja boa”. Se for inveja carrega ressentimento. Senti felicidade e leveza.
Findas as tarefas, diminui o passo. Vi-me em avenida onde um maravilhoso desfile de noivas se fazia. Noivas sem pares, em um alegre bailar com vento fresco e seco de um agosto em fim de manhã. O céu, pano de fundo para tanta beleza, tornava o branco ainda mais belo e luminoso. Noivas em fileira. O tapete, o começo do fim da linda florada.
Diário de Uberlânda 25 de agosto de 2019
quarta-feira, agosto 14
Sonhos
A escuridão abriu com força minha porta da sala. Não que fosse violenta, agressiva, intimidatória. Nada disto. Apenas estabanada em seu manifestar, talvez preocupada em saber que logo teria que dividir território com as estrelas e uma imensa lua cheia que, no camarim, se enfeitava para subir ao palco. Arrastou-se lenta pelos ladrilhos brancos do piso. Subiu paredes. Mansa, encostou-se nos rodapés. Ali ficou parada como se a espreitar terreno. Seguiu marcha parede acima. Sem cerimônia cobriu com seu negrume meu pálido Sclair, meu Viviaine Santos tão gentil. Os anjinhos barrocos esculpidos à perfeição de Antônio Francisco Lisboa, sempre olhar perdido, enfim se entreolharam, bochechas rosadas em um quase sorrir.
Seguiram de modo simultâneo sobre o abstrato de Nando Fiuza, espalharam sombras pelas vielas e telhados da bela aquarela de Jorge dos Anjos. Ali engoliram obra de Ana Abdalla, um lindo galo colorido da roça. Pensei ouvi-lo cantar a chegada da noite.
As sombras tinham padrão a seguir. Na parede oposta esconderam o lindo cerrado desnudo, também de Ana. Anoiteceu escuridão. Finalizou seu entrar em fotografia perfeita de cerejeira, parque de Washington DC, perpetuada pelo olhar de Eugênia Rodrigues. Sem saber, a sombra era abençoada por São Francisco de Helvio Lima e abraçada com amor por bela escultura de Adélia, sua esposa, ambas obras regalos do Mestre Queiroz, amigo especial, apreciador contumaz da boa arte.
Só percebi realmente o que estava acontecendo quando o espectro da paz, em fim de dia, pousou levemente as mãos em meus ombros. Levantei o olhar com certo cansaço. Princesa, a gata, levantou cabeça e orelhas em atenção virando-se para mim com seus assustados olhos verdes.
Fonte de luz agora apenas o brilho do computador. Nova tentativa de leitura digital. Dos corredores infinitos em impulsos eletrônicos da Biblioteca Nacional, garimpei um velho conhecido, Machado de Assis. A mão e a luva:
“- Mas que pretendes fazer agora?
- Morrer.
- Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco (…). O pouco mais foi uma flor, não colhida do pé em toda a original frescura, mas já murcha e sem cheiro, e não dada, senão pedida.”
As vistas doem, sinto tanta falta dos livros, do papel…
A escuridão, fora o monitor, dominava tudo. A ouvi subindo as escadas sem cerimônia em busca de meus segredos mais íntimos. Deixa, pensei. A noite é companheira discreta, não alardeia, não grita. Os sons, estes ainda abafados pelo frenético e último centrifugar de máquina de lavar, nem se fazia notar mais. Acostuma-se com quase tudo.
A “Mão” me deu um pensar. Queria eu escrever uma carta a todos os amores que tive em minha vida. Lembranças que teimam em aflorar de um nada. Sinapses inesperadas atiram a corda com balde no mais profundo dos poços da memória e, devagar, vem trazendo pesado à tona lembranças carcomidas pelo tempo.
Amores traídos, amores abandonados, amores perdidos por maltrato. Algum não soube cuidar. Péssimo jardineiro fui muitas vezes. A outros, zelo em quantia sobrante sufocou e matou. A vontade do escrever seria o contar que tudo se foi sem amargura, agora sem dor nem saudade. Talvez um pedido de desculpas pelo pouco ou pelo demais.
Hoje vivo a calma. Como Dirceu de Tomás Antônio Gonzaga, tenho agora minha Marilia para todo o sempre, um amor resgatado, bordado por décadas em alvas almas de pura paixão separado por tropeços, reencontrado por obra do destino (existe destino?). Tudo foi aprendizado.
Ser jovem há muito tempo tem suas vantagens, acabam-se as mentiras, as lembranças magoadas. Tudo vira um vazio recheado que em momentos de ficar só teimam em aparecer mas não trazem aflições, são apenas lembranças de um longe, talvez sonhar.
“- Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estêvão. Não se morre por tão pouco...
- Morre-se. Quem não padece estas dores não as pode avaliar.”
Ah, Machado! A murcha flor em suas Mãos tão significativa. Morre-se disso não! A lua rompe esvoaçante de seu nicho, séquito de estrelas serelepes a seguem e se posicionam no palco celestial. Braços, pezinhos luz em primeira posiçao bailarina. Um leve endireitar de postura, um balançar suave de cabeça. Silêncio.
Faz-se hora. O breu se encolhe um pouco aborrecido. Silêncio na platéia. As “pancadas de Molière” se fazem ouvir. E eu? Vou correr a colocar a roupa no varal. “Deve-se entrar na sala”, “Ocupe seu lugar”, “O espetáculo vai começar”
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Diário de Uberlândia ( Dia dos Pais) 11 de agosto de 2019
segunda-feira, julho 29
Coração
Pois é, fui ao cardiologista. Nada de mais, pois se tratava apenas de meu check-up anual. Chega certo ponto da vida em que temos de pedir benção aos doutores, para saber se podemos continuar na mesma toada do ano anterior. Tomar tento se podemos manter a mania ou vício de, literalmente, correr todo dia, pois meu passatempo preferido é caminhada puxada ou corrida a mil. Se passo dois dias sem colocar o tênis na trilha ou no asfalto, fico que nem bicho preso. Uma sofrência sem fim.
Como bom paciente, pacientemente esperei minha hora em uma sala cheia de gente, também aguardando por sua consulta. Não era pouca não. O telefone, em um tocar sem parar, avisava que tinha mais um tanto querendo consulta.
O coração de nossa gente anda frágil. Arrítmico crônico. Um ar de tristeza parece que tomou conta das pessoas. Um manto pesado a apagar brilhos de almas.
O nosso Brasil também anda doente, coração pronto a explodir. A televisão, os jornais e rádios nos jogam toneladas de tristezas diariamente. Custa uma notícia boa: Japão retoma matança de baleias. E a falsa pureza norueguesa, parceira dos nipônicos nos assassinatos de um dos mais belos e inteligentes seres marinhos, empenhada em “proteção” de nossas matas, mas destruindo e saqueando como fizeram os portugueses colonizadores, vorazes em depredação. Porém, agora as proporções são incomparáveis, com tecnologia a serviço da destruição.
Tudo isso com a anuência de um ministro do meio ambiente que não suporta verde. Ainda recebemos quilos de informação sobre educação e cultura ou antieducação e anticultura, de um ministro que não detesta educação. A única cultura que vemos protegida é a dos grandes produtores. Estes sim mandam e desfazem. Raposa chefe do galinheiro, o diretor da Funai é ruralista. Surreal Brasil.
Um chef renomado rouba especiarias de nossa floresta, de nossos quilombolas e as transformam em marca de grife. Aos donos da mata? Talvez migalhas em lugar de miçangas coloridas e espelhos lusitanos. No consultório lotado o telefone não pára. Corações apertados em gritos de socorro. Ao meu lado, suspiros e angústia. Sinto-me em pleno século V. O Império Romano ruindo Constantinopla é novamente tomada pelos otomanos. Os humanistas, sim como agora existiam, viviam a Idade das Trevas.
Não muito diferente do que estamos passando globalmente. Loucos no poder, manipuladores das mídias se fazem em pura propaganda, doutrinários alunos aplicados da escola de Goebbels.
Meus exames? Passei com louvor. Sabe-se lá até quando o bronze aguenta. Andei a pensar que vou tentar uma embaixada em uma ilha deserta. Sei contar estrelas-do-mar e da noite, sei sentir brisa, maresia, confidencio com vaga-lumes e morcegos, identifico cantos de pássaros, voo com borboleta. Sei cantar em prece para Iemanjá.
Não, não seriam requisitos para fazer jus a tamanho posto e no mais, longe de mim compactuar com essa gente miúda dos poderes manipuladores da informação, seja lá ou cá. Peço distância. Vou cuidar de meu bronze e, de alguma janela, com olhar altaneiro, esperar ansioso o fim da escuridão. A luz de nova Renascença.
E o “ser humano foi revestido de uma nova dignidade e colocado no centro da Criação”, e que da escuridão, surjam luzes como faróis fincados em sólidos rochedos, a nos guiar e aliviar cansados corações.
“Os homens sabidos/ E sabedores /Garantem que surgiu uma nova estrela/Fredera e Wagner Tiso me representam.
É o tempo da nova estrela/Há quem diga que Cristo retorna
E sua marca é um dente dentro da garganta/A estrela dita um novo tempo/E convoca pensadores a tecer novos pensamentos
E convoca lutadores a novas batalhas/Nada sabemos ainda/Sabemos apenas do novo corpo/ Que brilha igual ou diferente dos corriqueiros corpos celestes/ Do chão de nosso litoral apenas olhamos(…)”
(A Nova Estrela - Som imaginário 1971)
Pronto, vão dizer que sou petista, comunista, ou outro “ista” qualquer, pois falei de estrela. E olha que nem tomo cerveja Heineken. As pontas da holandesa estrela representam “terra, ar, fogo, água e um quinto elemento que acreditavam ser mágico e até hoje é desconhecido”.
Ninguém tem o direito de se apoderar dos astros, cores e bichos. São a expressão máxima da beleza/ pureza. E sonhos, não envelhecem jamais (Obrigado Bituca). Agora só falta fazer como na Hungria, onde querem banir a estrela da cerveja, porque na cabeça de alguns mandatários idiotas ela remete ao comunismo. Jesus amado! Bom, para quem perde tempo com tomada de três pinos nada é impossível.
Enquanto isso, corações machucados em doença ou paixão aguardam (in)pacientemente, aos montes em corredores de consultórios,
No mais, Gerais!
Diário de Uberlândia - 28 de julho 2019
segunda-feira, julho 15
Carroças - Parte I e II
Feche os olhos e imagine a cena: hora do rush. Não, essa palavra não combina com nossa cidade, não temos um rush de verdade, temos tumulto e pressa de sair do trabalho e correr para casa ou para o boteco. Rush é coisa para São Paulo, Belo Horizonte, Nova York. Por falar na capital em BH, há pouco tempo estávamos por lá a ministrar curso em manejo de escorpiões. Compondo equipe de instrutores levei especial amigo e profissional de primeira linha da cidade do Prata.
Acostumado com a tranquilidade pratense, certa tarde, ao tentarmos, sem sucesso, cruzar a avenida Getúlio Vargas em plena Savassi na faixa de pedestre esperamos mais de 40 minutos na boca da noite rumo ao hotel. Ele, depois de dezenas de tentativas, desce da calçada, volta correndo, pula para trás, dois passos a frente, em coreografia digna de fina academia de ginástica, me saiu com essa:
— Esse pessoal daqui não trabalha, não? Será que não tem nada melhor para fazer do que andar o dia inteiro de carro?
Não restou, além de rir e concordar, o trânsito de Belo Horizonte é caótico, lá tem rush, e como tem.
Mas voltando à vaca fria. Imagine a cena: hora do aranzé das seis da tarde aqui em nossa Uberlândia. Todo mundo apertado em nossas vielas estreitas e despreparadas para o atual volume de carros a circular agressivamente pelo Centro.
À sua frente, caro leitor, segue em toada tranquila nada mais, nada menos do que uma carroça, e, obviamente, o carroceiro e seu cavalo. Para desespero do condutor, seu animal é, como todos os outros, por natureza, pouco dado a controle de esfíncter e regras sociais, resolve, na pureza de sua existência, como uma criança ou um cão de madame, durante seu harmonioso trotar, fazer suas necessidades.
O carroceiro, cidadão cumpridor de suas obrigações e muito bem informado, puxa as rédeas, para a condução, calmamente busca tateando sob o banco um saquinho de plástico. Não encontra. Puxa da memória e dá um empurrão com as costas da mão no chapéu, como a ventilar as ideias. As primeiras irritadas buzinas já se fazem ouvir na fila que rapidamente se formou bem coladinha na traseira do velho coche de trabalho.
Ah! Deixei na caixa de ferramentas – pensa com seus botões. Totalmente indiferente ao buzinaço que agora se faz ouvir a quilômetros, desce, pega o saquinho, procura a pazinha e calmamente recolhe o montinho de estrume que poderia infectar de pragas bíblicas a nossa cidade.
O cavalo, aparentemente indiferente, se mantém impávido a mastigar distraidamente o bridão. Obrigação cumprida, tão comprida quanto a fila, que, a essa altura, já faz curva lá pelas bandas da Nicomedes. Aqueles lá no final do congestionamento e que não fazem a menor ideia do cinematográfico e jamais visto congestionamento, já fora dos carros, se põem a perguntar angustiados o motivo de tamanha confusão. Será que aconteceu um grave acidente com direito a ônibus em chamas, carros de bombeiros e ambulâncias? Não, acho que foi um assalto a banco com cerco policial e tiroteio.
Um bicicleteiro sacana, vindo na contramão do fluxo, da cabeceira da fila comenta entre dentes: foi um atentado a bomba, tem até esquadrão especializado lá; abaixa a cabeça para evitar ser flagrado em seu cínico sorriso frente ao atônito olhar dos imobilizados motoristas.
(continua)
Diário de Uberlândia 14 de jullho 2019
Carroças parte II
Nota deste modesto missivista: Seria legal passada d’olhos na Parte I aqui no Diário de domingo passado. Segue a prosa.
O boato vai crescendo, a história toma rumos surreais: a Tubal Vilela afundou, resultado de falha geológica até então imperceptível.
Nosso carroceiro salta ligeiro para seu carrinho ganha-pão, estala a língua, e o cavalo, adestrado a alguns poucos comandos, retoma sua marcha tranquila. Isso na Tubal Vilela.
A puxar gigantesco cortejo ao som irritante de buzinas mal-educadas e xingamentos impublicáveis, segue seu caminho. Na primeira esquina, bem perto do fórum, não é que seu bicho me resolve dar outra descarregada? Também com tanto pizeiro a gerar stress no animal, não podia dar outra. E a ladainha começa outra vez.
Compromissos, aulas de pilates e novelas perdidas, amigos deixados sozinhos em mesa de bar, filhos na porta da escola, humores em baixa, ataques cardíacos, crises de pânico. Tinha que ser numa sexta-feira! Esconjura outro. Só sendo cremnóbata ou praticante de pacur, para vencer tamanho obstáculo urbano.
E por quê? Tudo por um monte ou dois de cocô.
Céu estrelado, tarde engolida por sombras de prédios. Aos poucos a normalidade.
Nem um vestígio do estrume ficou para contar a história. No entanto, por toda a avenida de ponta a ponta, um mar de papéis, de palitos de sorvete, sacos plásticos, de latas de refrigerante e até jornais e revistas, como se furacão ali tivesse deixado rastro. Tudo fruto da impaciente espera e da falta de educação e postura cívica de tantos diante de importante missão do carroceiro cumpridor da lei.
Proíbem-se os irracionais animais a não sujar vias públicas com material que logo se desfaz em inócuo pó verde e segue inofensivo bueiro abaixo, e humanos continuam a jogar seus restos entupidores de esgoto e redes pluviais ao léu e nem por isso incomodados são.
Já o carroceiro, nesse momento a trotar rumo à sua casa e merecido descanso, olha para um lado, olha para outro e displicentemente, sem maldade, por puro hábito e costume, joga seus embrulhos de merda na primeira sarjeta ou terreno baldio que encontra, longe de olhares
fiscalizadores da lei. Fezes embrulhadas para presente ganharão rumo de nossas galerias ou ficarão escondidas no mato a chamar moscas e baratas. Ali pode?
Somos uma cidade de origem rural, mesmo que muitos disso não gostem. Ainda podemos nos dar ao luxo de ter honestos cidadãos que da carroça tiram sustento.
Quando aqui cheguei, em época que os bichos ainda falavam como diz um compadre, as carroças se concentravam ao lado da antiga rodoviária na praça Cícero Macedo.
Não foi uma nem duas vezes que usei desse transporte como táxi para chegar até a pensão lá na Duque de Caxias na qual morava.
Vim da já naquela época aprendiz de caótica Belo Horizonte. Este bucólico meio de locomoção compôs a porção mágica de sedução por Uberlândia. Com raras exceções, reclamações estrumicas, vinham talvez apenas de algumas pudicas senhoras às portas de igrejas que viam no ato fisiológico conotações pecaminosas.
Claríssimo para qualquer um que os tempos mudaram e que as carroças carecem de alguma regulamentação, acho que já li algo a respeito em nosso código de posturas. Mas daí a obrigar carroceiro a catar excremento cavalar, me parece outra lei para jamais ser cumprida. A intenção pode até ter sido das melhores, mas não seria melhor apenas determinar horários de circulação? É esperar para ver.
Diário de Uberlândia 21 de julho 2018
segunda-feira, junho 17
Gente estranha I e II
Esta não é uma crônica política nem ideológica. Ė uma constatação nefasta.
A vida vai levando nossas emoções, paciência, tolerância e mais algumas coisas em banho-maria, em quentura de fogo baixinho. Braseiro de fogão de lenha em amanhecer. Parece só cinza, um calorzinho vai saindo leve que nem a chapa esquenta. Mas bastam alguns gravetos, uma palha de milho e um sopro ligeiro de quem mal acordou, para que as brasas virem fogo e logo, no calor de manhã fria, água entre em fervura para café coar.
Andava eu assim, em cinza morna, observando, observando.
Quando criança, filho de oficial da marinha americana, morávamos em uma das cidades mais frias dos EUA, na divisa com o Canadá, às margens dos Grandes lagos. Próximo à nossa casa havia um pequeno pântano que, claro, éramos proibidos de cruzar, embora fosse um atalho dos bons para chegarmos à escola. Como toda criança normal seguíamos nosso irmão mais velho pelo short cut, Ele pra variar sempre nos xingava e nos ameaçava de afogamentos, areia movediça e pé-grande ferozes. E adiantavam as ameaças? Eu e minha irmã mais nova o seguíamos à distância e ele fingia não nos ver. Numa dessas consegui, à custa de uma boa surra posterior, capturar uma linda rãnzinha verde, de olhos imensos e coraçãozinho disparado na palma de minha mão.
A tunda valeu, pois minha mãe me deixou ficar com o bichinho, contanto que cuidasse dele com carinho e o soltasse junto à sua família uma semana depois. Mesmo com todo o zelo que tive dois dias depois a rãnzinha morreu. Entrei em choque devido à culpa que senti. Copiosamente chorei e fiz seu enterro em nosso jardim. Coloquei até cruzinha na sepultura, apesar de minha família judia. Foi a única cara feia que vi meu pai fazer e não era pela morte do bicho. Até hoje sonho com isso.
Por motivos de doença de meus avós maternos tivemos que voltar para o Brasil. Minha mãe era mineira de Teófilo Otoni. Como conheceu e se casou com meu pai já é outra deliciosa história. Hora conto.
Chegamos nas asas da PANAIR em um reluzente Constellation, depois de mil escalas, incluindo uma em Havana. Opa, já sei! Vão me chamar de comunista, pois pisei em solo cubano. Contudo, aviso que não almocei com Fidel. Ah, para aqueles que detestam história, a época era a do ditador sanguinário Fulgêncio Batista.
Já no Galeão, mais uma demonstração de que os bichos seriam minha vida. Enquanto todos passavam pela alfândega e migração, eu corria de um lado para outro com uma caixinha pegando moscas. Nunca tinha visto aqueles “passarinhozinhos” na vida!
Assim, fui cuidar da vida, reaprender português, criar passarinho de pena e canto, galinha e pato, como era moda entre os meninos em Belo Horizonte, onde nasci e retornava para morar. Ah, meu querido Manoel de Barros, o meu quintal era maior do que o mundo!
Possuía uma infinidade de espécies de saíras coloridas, canarinhos, bicos-de-lacre, sabiás e outras tantas espéciestodosem gaiolas.
Cuidava deles com carinho e admiração. Cores e cantos, minhas jóias. Enquanto outros meninos usavam estilingues e bodoques, eu os criava e não admitia matar bicho em meu reino/quintal.
Um domingo de brilho indescritível amanheceu naquele céu de 1965. O entorno era cinzento e negro. Meu país sofria horrores.
A criança de nada sabia. Via mas não entendia.
Domingo de luz. Tinha acabado de tratar de todos os passarinhos. Sentei-me à sombra de frondosa goiabeira, minha morada preferida em meu pequeno domínio. Ouvia meus passarinhos em canto, que soava naquele dia mas pareciam clamores de tristeza como grito de sofrimento e morte. Um estalo! Em grande gaiola coloquei quase todos juntos e com ajuda de amigo subimos até as torres da TV Itacolomy, passando pela favela do Pindura-saia.
Às minhas costas Belo Horizonte, à minha frente a mata do Jambreiro. Naquele tempo era do povo, hoje uma Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), de ninguém menos do que a assassina Vale. Abri as portas das gaiolas, o céu se pintou em milhões de cores e pios, o bater asas a fazer vento em rosto de menino que, sem saber motivo, chorava. Contraditoriamente, foi um dos dias mais felizes da minha vida. Tinha descoberto meu fado. Cuidar de bicho e de planta, zelar pela vida por menor que fosse.
Desci a Serra do Curral correndo e chorando a rir. Sentia-me o mais feliz dos seres. Assumi essa missão, que tento a duras penas seguir. Passei décadas a defender os mais estigmatizados dos bichos, briguei por corte de árvore, plantei e vou plantar muito ainda. Salvei centenas de colméias de abelhinhas dos fornos de carvoeiras. Esparramei abelhas e sementes. Assim vou ser até o fim. Acredito nos bichos e nas plantas, em gente muito pouco.
Gente estranha II
Agora, nos últimos meses, fecho o tempo a contar, coração acelera em raiva, sangue nos olhos de tristeza e revolta.
Não dá mais. Sobre leve graveto ou palha de milho o fogo veio alto. Se não houver válvula de segurança vai explodir. Juro, nunca vi tanta besteira em tão pouco tempo. Sei que vai virar aquela polêmica chata, tipo Atlético versus Cruzeiro. Podem espernear, recitarem receitas de bolo pronto, culparem os anteriores e o escambau. Aviso que não terão resposta de minha parte. Dessa forma, podem ofender com gosto e com toda estupidez que lhes é particular. Minha intenção não é polarizar mais essa política nefasta que andamos a viver. Nada de direita versus esquerda. A discussão fica muito pequena. É reducionismo em excesso (podem chamar de circunlóquio ou até de pleonasmo, mas quem não sabe definir comunismo com imparcialidade não vai saber nem do que estou a falar). Eu não aguento mais!
O país está divido entre os defensores de Darth Vader, nascido Anakin Skywalker e o resto. Aliás, para aqueles o “resto” é comunista. Para mim nenhum conseguiu definir “comunismo” de maneira convincente e de fato nem sabem o que significa. Há também o socialista, cujos primeiros o consideram um perigo. Alimentam a ideia de que irão entrar em suas casas e “socializar” tudo que é seu. Misericórdia Divina, quanta ignorância!
Não dá mais para segurar a bronca. Entre as muitas besteiras vou naquelas que me diretamente me irritam com força, como se aquela criança lá do começo fosse atacada na alma e sóme refiro ás mais recentes, O espaço é pouco. Dá para aguentar? Logo de cara tentou-se acabar com o Ministério do Meio Ambiente, levando em conta quem lá está até que poderia se pensar nisso novamente.
Reproduzo aqui parte de texto de João Lara Mesquita de 24 de maio de 2019, publicado no Estadão sob o título “Cancun em Angra dos Reis, nova bobagem de Bolsonaro”. Disponível em https://marsemfim.com.br/cancun-em-angra-dos-reis-bolsonaro/:
“Ele está no poder há apenas cinco meses. Cinco meses de confusões, bate- cabeça entre a cúpula do governo; discursos desconexos, trocas de ministros, etc. Na área ambiental não foi diferente. Exoneração do fiscal que flagrou Bolsonaro pescando na ESEC de Tamoios; abertura da área do banco de corais Abrolhos para prospecção de petróleo; ameaças infantis de abandonar o protocolo de Paris; de transformar o MMA em apêndice do ministério da Agricultura; acusação sem provas ao Fundo Amazônia cujos parceiros estranharam; ameaças de acabar com as multas do Ibama; creditar o aquecimento global a um plano orquestrado por comunistas e mais. Não por acaso, o desmatamento na Amazônia explodiu este ano. Agora vem a estapafúrdia ideia de importar a cafonice brega, criando uma Cancun em Angra dos Reis, justamente nos 5% da baía de Angra formada pela unidade de proteção integral, ESEC de Tamoios! Simplesmente, para um site especializado em meio ambiente marinho, não há como não repercutir mais esta idiotice.”
Gonzaguinha, onde estiver: “Não dá mais prá segurar, explode coração”.
Diário de Uberlândia dias 9 e 16 de junho 2019
terça-feira, junho 11
O trecho - outra parte
Volto às luzes. Movimento rápido outra vez, sem ser brusco voltava a sumir para agora brilhar no meio do pasto. Riscava um oito imenso e com rastro no alto céu e sumia, agora só amanhã. Hora era uma sozinha, hora eram muitas. Ficavam perto, muitas ficavam longe muito longe lá no contorno do vale. Luz de carro dizia uns – mas como se lá nem estrada tinha, nem atalho, e até hoje não tem.
Uma feita eu mais Vilson Gato – nome de batismo mesmo Gato, não era por assim chamado apelido não – coisa de Padre Dázio? Ninguém afirma – resolvemos correr atrás delas.
Brincou conosco, corremos mais de quilómetro e ela arteira na frente. Sumiu outra vez, zombeteira, já estava lá junto de Bia, e ela não via, só Vilson e eu cá de longe.
Carece sei eu de falar mais da aparência das luzes, difícil contar. Um diamante com luz dentro. Pronto descrevi, era assim. Ou quase, tem coisa sem jeito de contar, palavras faltam, estão aqui as lembranças não saem recontadas – difícil.
Tento: acende luz dentro do puro cristal, vai ver o que víamos toda noite no céu, na estrada, no pasto no mato – um brilho sem calor – suave e vivo. Era assim. Maravilhoso.
Gente estudada por lá esteve observando, vieram da capital. Aparelhamentos e muito observar. Ficaram uma semana – a luz só deu o ar da graça duas vezes – e rapidinho, acho que não gostou da cátedra – os professores se foram frustrados mas crédulos pois viram e filmaram, não contaram mais nada para nós da vila. Arrogância de doutor de papel, só, conhecedor nada da vida das gentes. Levou muito, nada, as luzes ficaram nossas.
Um dia, nem te conto, mas tenho que contar. Era um sábado – tarde da noite para nossa vila já dormindo. Fomos buscar a companhia mágica de nossas luzes. Nossas sim, todo mundo via, conhecia, mas não punham o reparo merecedor. Acostumaram e pronto – as luzes? Ah as luzes, sei estão lá fim de prosa, virou cerca, virou cobra, virou árvore, mas novidade não, nem te ligo. Perdeu o encanto para os quase todos.
Seguimos a acompanhar o bailado de luz por hora ou pouco. Depois nos colocamos a ir – surpresa – uma acompanhou o batido. Seguiu de longe. Entrou na vila desconfiada. Passou rente a farmácia fechada a anos, desceu a rua. Cruzou a outra rua. Na esquina o bar do Jorginho japonês, meia dúzia com as cabeças presas no dominó. Não adiantou gritar por nome, ninguém olhava.
Cruzou conosco, a meio trote a frente da escola e da igreja, à esquerda desceu rumo ao campo onde o circo ficava. A direita no fim do campo, a esquerda no corredor de gado onde morávamos. Não seguiu mais. Parou no moirão da cerca. Brilhava-brilhava. Descemos até o portão – e ela lá a vigiar. Não sabemos até quando ali ficou. Sentimos estranha proteção.
Por muito passar de tempo com as luzes compartilhamos. Segredos e mágica. Mudamos para cidade, as luzes, minhas luzes, as luzes de São Sebastião do Pontal. Se continuam lá não sei. Talvez falte platéia, talvez falte companhia. Hora vou lá de visita. Depois conto. O trecho ainda é longo, tem muita história, acabou não.
Diário de Uberlândia
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