Era a primeira chuva. Redentora, anunciava o fim de longa estiagem, chuva tão esperada por homens, bichos e plantas.
A poeira também desceu rápida dos céus e lavou o ar, lavou vento e folhas. Ela sentiu cheiro de verde e terra molhada. Respirou delicioso ar puro e úmido, seu peito se encheu de vida.
E ela encantada andou na chuva descalça. O toque de seus pés desnudos com o chão lhe trazia um prazer singular. Em algum cantinho de suas mais belas lembranças lá estava a sensação. Déjà vu.
As pequenas pedrinhas que por vezes topava não a incomodavam em nada. Pequenas alfinetadas nos pés com gosto e lembrança de infância, não doíam mesmo em dor.
Ela na chuva cabelos molhados sentia a bênção de ter os pensamentos e emoções lavadas, sentia-se transportada para algum lugar lá longe no tempo, quando era mais feliz. Não que fosse triste, pelo contrário tinha tudo, ou quase tudo, com que sempre sonhara.
Mas a alma humana verdadeiramente sensível, verdadeiramente alma, pode algum dia se dar ao luxo de plena, de plena... calma?
A roupa agora encharcada se fazia nova pele, o contorno de seu corpo visível em água, e ela estava feliz por que gostava do que via, do sentia, gostava. Privilégio.
Hoje não vestiu sua armadura de segurança, se expôs aos seus verdadeiros sentimentos, e a chuva que hora tomava lavou, levou todos os seus temores para bem longe.
Pele e seios encantadoramente arrepiados em prazer indescritível. Vontade de gritar!
Uma lágrima de felicidade a se misturar com a chuva. Não, aquela lágrima não se misturou. Como diamante de rara pureza, lapidado em cor, dor e muito amor escorregou por seu rosto, percorreu-lhe o corpo em manso afago, e sempre brilhando, destacada na enxurrada, buscou caminhos de um rio, e lá ainda em brilho de gema-alma permanece eterna, guia, conduz, norteia aqueles que como ela aprenderam a amar.
Hoje, cansada de mesmices e protocolos fúteis tomou chuva com gosto e vontade, por um instante, breve instante, se tornou outra pessoa, seu corpo exalava perfumados temperos: salsa, salvia, alecrim, e tomilho, a mística música.
Com as sandálias nas mãos, decote aberto, vestido enrolado até os joelhos, olhos entreabertos, sorriso puro em larga e carnuda boca, encharcada até os ossos e feliz cantarolou:
Are you going to Scarborough Fair?
Parsley, sage, rosemary and thyme
Remember me to one who lives there
For once she was a true love of mine
Have her make me a cambric shirt
Parsley, sage, rosemary and thyme
Without no seam nor fine needle work
And then she'll be a true love of mine
E eu me lembrei tanto dela.
agosto - 2008
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