Foi salva milagrosamente das águas da lagoa da Pampulha a pequena "Moisés", que paradoxalmente iria receber o nome de Iara, a dos Tupi-guarani, deusa das águas, mãe-d'água em nossa língua primeira e verdeiramente pátria, que no sincretismo religioso é associada a Nossa Senhora da Conceição e a Nossa Senhora dos Navegantes.
Certamente que fatos assim nos deixam revoltadíssimos, uma raiva cega cresce dentro de nós só de pensar que alguém, um homem-humano pode ao menos pensar em tal barbaridade, e as imagens mostradas na televisão só aumentam essa revolta. Caso contado já seria difícil de entender, mas mostrado acentua o sentimento, que de raiva, sem que percebamos passa a ódio. Ódio talvez não apenas da descontrolada mãe (mãe?), mas ódio de nós mesmos por pertencermos à mesma classificação zoológica dela, portanto também passíveis de cometer alguma loucura como essa ou pior, em algum momento de nossas vidas por mais que neguemos de pés juntos essa possibilidade. Seremos tão estáveis assim?
Direito à indignação é claro que temos, estranho seria não se indignar, quanto ao direito de julgar, sei não. Com certeza seria difícil encontrar alguém neste momento realmente isento e imparcial. Juízo feito, condenação certa.
Um perigo. Hoje mais do que nunca precisamos da ajuda de psicólogos para avaliar até que ponto uma suposta (e alegada) depressão pós-parto poderia levar um ser vivente a matar/abandonar sua prole, ou seria apenas mais um recurso jurídico para abrandar uma bem provável condenação. Infanticídio ou tentativa de homicídio qualificado?
Convivemos hoje (sempre foi assim?) com as loucuras da vida: as guerras sem razão, a fome, as epidemias. Corrupção avassala por todos os lados, a banalização da violência. A intolerância reina. Estamos fadados a perder nossos sentimentos mais nobres de amor ao próximo, amor este tão propalado pelo Filho Dele?
Olhemos este abominável fato da pequena criança das alterosas com muita cautela, é possível até ter piedade daquela mãe, por favor não me crucifiquem! Não lavemos nossas mãos e, em ato insano simplesmente atiremos a mulher aos leões famintos por vingança, ato este que na verdade representaria a nossa hipotética redenção e, a partir daí poderíamos, com a desculpa de "ter feito justiça", dormir tranqüilos deitados sobre nosso próprio horror íntimo.
Sempre negamos nosso lado feio, temos muito medo dele, oculto, escondido a sete chaves, trancafiado no mais escuro corredor de nossas almas. Torre sem portas ou janelas. Deixemos o julgamento para os competentes e imparciais juristas, deixemos a avaliação mental da acusada para os especialistas psicólogos estudiosos das artimanhas das mentes.
Crime e castigo. Evoco Dostoiévski: esta mãe, como o perturbado Raskolnikov vagando por São Petersburgo após assassinar uma velha judia por dinheiro, também, até o fim de seus dias será torturada por seu ato, primeiro castigo. Se culpada, que receba a mais dura das penas permitidas por lei, se doente, portanto inimputável, que seja tratada como tal. E os sedentos, portadores de patológica sede de justiça (vingança), poderão, como o jovem estudante russo de Dostoiévski descansar sem medo da perspectiva de ser punido por Deus e pela polícia do czar.